
Um projeto com tramitação meteórica no Congresso colocou água fria numa discussão que vem sendo levada em banho maria desde 2002 no país: o rastreamento de medicamentos. O texto aprovado com folga no plenário do Senado tinha como principal objetivo permitir a adoção de bulas digitais. Mas a proposta aceita pelos parlamentares, e que vai para sanção presidencial, revoga o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos (SNCM), discutido à exaustão nos últimos anos.
Previsto para ser controlado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o sistema estabelecia que todos os medicamentos comercializados no país viessem com uma identificação, uma espécie de RG, que permitiria que produto tivesse seu trajeto controlado desde a produção até a venda ao consumidor.
O objetivo era garantir o controle do produto, evitar falsificações, roubo de cargas ou descaminho. Além disso, seria importante caso fosse necessário recolher produtos que tivessem efeitos colaterais ou problemas identificados somente depois de deixar a fábrica.
O sistema foi criado pela Lei 11.903, de 2009 e, depois de sucessivos adiamentos, deveria entrar em vigor no fim de abril. A medida exigia providências de todos os envolvidos: indústrias, distribuidores, pontos de venda e Anvisa. O desafio era grande. Pelos cálculos da indústria, seria necessário gerenciar cerca de 15 bilhões de dados anuais. A Anvisa havia contratado recentemente serviços da DataPrev.
Por causa da pandemia, parte do setor sugeriu que o prazo fosse adiado, novamente, por três anos. Desta vez, no entanto, a prorrogação do prazo era amparada por uma justificativa difícil de rebater. O caos enfrentado principalmente nos primeiros meses da emergência teriam atrasado providências e, por isso, seria natural ampliar o prazo para que todo setor adotasse as medidas necessárias.
Um projeto com a proposta foi aprovado no Senado, sob relatoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), no ano passado e aguardava avaliação na Câmara. Ali, contudo, emperrou. Apesar da pressão de defensores do sistema de rastreabilidade, nem mesmo o pedido de urgência foi avaliado. Enquanto isso, o projeto que inicialmente tratava apenas da bula e que incorporou o fim do SNCM caminhou rapidamente. Trad foi escolhido como relator. Mas, desta vez, adotou um entendimento muito distinto do que havia apresentado no fim do ano passado. Argumentou que, independentemente da lei, a Anvisa tem prerrogativa de fazer a rastreabilidade. Acrescentou ainda que, por meio de resoluções é sim, possível, fazer um sistema semelhante.
A proposta aguarda ainda a sanção. Mas o desfecho até aqui deixa uma série de dúvidas sobre como ficará o monitoramento desse setor essencial para saúde pública. O texto aprovado determina que o laboratório deve ter um sistema que permita acompanhar a distribuição de medicamentos por lotes. “Mas isso chega somente até distribuidores. Depois, o controle termina”, afirmou o presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini.
Trad manteve ao longo das últimas semanas várias reuniões com representantes da indústria, distribuidores, varejo e com a Anvisa. Afirmou que ouviu mais argumentos contrários ao sistema. Uma das justificativas do fim da previsão de um sistema nacional, controlado pela agência, era o de que, ao ser proposto, o mercado era outro. No início dos anos 2000, argumentam, o roubo de carga era recorrente e o risco de falsificação de produtos, muito maior. Agora, com notas fiscais eletrônicas, o controle pode ser muito mais eficiente. E, de olho nos custos, repetiam: o investimento seria muito alto para um retorno duvidoso. O grupo falou mais alto e ganhou.
O presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, afirmou ao JOTA não ter dúvidas de que a existência de um sistema traria benefícios. “A verdade é que o sistema parecia promissor. Mas como não foi colocado em funcionamento, nunca saberemos qual seria o seu ganho”, disse Mussolini, um defensor do sistema de rastreabilidade. “Muitas empresas investiram para se adaptar às exigências que agora são deixadas de lado.”
O desfecho, no entanto, traz uma melancólica constatação de tempo perdido. Ao longo dos últimos anos, foram incontáveis as discussões sobre propostas. No início, chegou-se a desenhar um programa em que o rastreamento seria feito a partir de um selo, produzido pela Casa da Moeda. Criticado de forma unânime, esse formato foi engavetado. Quando o novo modelo foi acertado, foram discutidos projetos piloto, etapas para implantação do sistema, prazos, prorrogações. A rastreabilidade está longe de ser uma jabuticaba. Outros países já têm sistema. Tanto é que muitos dos produtos que aqui chegam para serem vendidos já trazem estampado na embalagem o seu “RG”. Isso vai continuar. O que não haverá, contudo, é um sistema capaz de ler as informações.