Foi esclarecedora a participação do presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), José Hiran da Silva Gallo, na cerimônia realizada na Câmara dos Deputados nesta terça-feira (18/10) para comemorar o Dia do Médico.
Em um plenário recheado de pessoas que vestiam camisetas amarelas, Gallo iniciou seu discurso bem humorado, mas bastaram manifestações contrárias ao presidente da República para que ele mudasse o tom. Depois da breve interrupção e da retirada dos que organizaram o protesto, ele retomou a palavra e disse que os críticos tinham QI de ameba. Mais ainda, que, como praticante de artes marciais, não tinha “um pingo de medo” e estava disposto a enfrentá-los. Por fim, que episódios como esse motivam ainda mais a defender o país “desses psicopatas”.
Há uma discussão sobre se psicopatia pode ser considerada transtorno de comportamento. Mas não deixa de chamar a atenção que um médico, em menos de dois minutos, use a psicopatia e o baixo desempenho em teste de inteligência como argumentos e, pior, como adjetivos. Uma das grandes qualidades defendidas por essa classe profissional é, afinal, a empatia.
O Conselho Federal de Medicina tem como missão promover o bem-estar da sociedade e disciplinar a profissão. A autarquia também afirma “atuar com excelência pelo bom exercício ético e técnico”. Mas não é de hoje que se somam críticas à entidade.
Em janeiro de 2021, ex-presidentes e conselheiros divulgaram um manifesto pedindo que o CFM viesse a público e manifestasse seu apoio à vacinação da Covid-19, contra o uso de tratamentos sem comprovação científica para a doença e em defesa de medidas não farmacológicas como o distanciamento físico. “Onde está a entidade máxima da categoria médica do Brasil?”, questionavam os autores. Em defesa, a autarquia disse, na ocasião, que já havia se manifestado.
Além de acreditar que a entidade poderia fazer mais para esclarecer a população sobre formas eficazes de proteção, causou espanto o fato de o órgão não trazer o debate em torno do uso da cloroquina para tratamento da Covid-19. O argumento era o de que deveria prevalecer a autonomia profissional.
Esse tema não foi revisto até hoje, mas o CFM agora se volta contra o uso de canabinoides para tratamento de doenças como depressão, insônia e dores crônicas.
A resolução publicada na semana passada, depois de um criticado processo de consulta pública, limita o uso da substância para tratamento de epilepsias de crianças e adolescentes refratárias às terapias convencionais. O desfecho era em parte esperado e temido por observadores. Sobretudo diante de decisão do Conselho Regional de Santa Catarina, que tinha restringido a prescrição de canabinoides a determinadas especialidades médicas.
No mesmo dia da publicação da resolução, entidades de pacientes e associações ligadas a empresas produtoras criticaram a decisão. E os estudos mostrando bons resultados? E o que acontece quando esses adolescentes crescem? Ficam sem tratamento? Como o CFM usa como argumento da autonomia profissional no caso da cloroquina, que sabidamente não tem efeito para tratamento de Covid-19, e restringe o uso de canabinoides cada dia mais estudados?
Embora a publicação de pesquisas sobre uso de terapias com canabinoides aumente a olhos vistos e haja no país um aumento de médicos que prescrevem para seus pacientes produtos comprados em farmácias do país ou importados, há ainda uma corrente ultraconservadora que vê com reservas a prática.
A decisão do CFM atende perfeitamente aos desejos desse grupo e restringe a possibilidade de médicos fazerem palestras e cursos sobre uso de canabidiol fora de ambientes científicos.
De olho nos desejos de grupos ultraconservadores, o CFM não levou em consideração os estudos que se somam sobre o tema, as necessidades dos pacientes, os apelos feitos pelas famílias. Mais ainda: desconsiderou que o tema está longe de ser bandeira de grupos políticos de direita ou esquerda.
Basta lembrar o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército e portador de Esclerose Lateral Amiotrófica. Em agosto de 2019, numa entrevista concedida ao SBT, ele classificou como “hipocrisia social” a dificuldade de se obter o medicamento no Brasil.
A tradicional sintonia entre o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e o CFM exibe neste momento sinais de descompasso. Talvez diante da polêmica criada e da proximidade da eleição, Queiroga disse que falaria com representantes da entidade, mas a palavra final seria do CFM.
Se o CFM não voltar atrás, entidades devem ingressar na Justiça contra a resolução. Mas isso deve ocorrer somente depois da eleição para evitar que o tema seja usado na campanha. Mais um desgaste para a imagem do conselho que, nos últimos anos, afastou-se da imagem de defensor da ética e do debate técnico.
Durante a cerimônia desta terça, o presidente do CFM falou das eleições. Mesmo com parlamentares na mesa diretiva dizendo que a homenagem não era um ato político, Gallo combateu o programa Mais Médicos e recomendou que era necessário “saber votar”.
Com o episódio, fica mais fácil entender por que o CFM optou por suspender a apresentação da campanha alusiva ao Dia do Médico, alegando a proximidade da eleição e a possibilidade de “penalização”.