A Anvisa caminha para confirmar a proibição de cigarros eletrônicos no Brasil tão logo se encerre o período de consulta pública. Em 1º de dezembro, diretores sugeriram manter a regra, que está em vigor desde 2009 e, por unanimidade, aprovaram o envio do tema para consulta pública por um prazo de 60 dias.
A percepção é a de que o material reunido pela área técnica e as manifestações coletadas ao longo do processo de revisão, sobretudo do Ministério da Justiça e do Ministério da Saúde, são suficientemente fortes e não deixam margem para uma mudança de postura. Uma reviravolta, dizem, ocorreria apenas se houvesse a apresentação na consulta pública de algum estudo decisivo sobre o tema – o que dificilmente deve ocorrer.
O provável desfecho da Anvisa, no entanto, não encerra o debate. Um projeto de autoria da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) propõe a regulamentação para produzir, vender, importar e exportar vapes ou pods, como são conhecidos os aparelhos. O texto foi apresentado em outubro e está sob a relatoria de Eduardo Gomes (PL-TO) e, pelas palavras da própria autora da proposta, foi apresentado como forma de manter o tema em debate.
Consultor da área de Life Sciences e Healthcare do Souto Correa Advogados, Matheus Montecasciano avalia o que pode ocorrer. “A tramitação no Legislativo provavelmente virá acompanhada de audiências públicas para ampliar o debate sobre impacto social, econômico e fiscal de uma possível legislação”, afirmou, em nota enviada ao JOTA.
Os argumentos usados por defensores da liberação dos dispositivos eletrônicos de fumar (DEF) são conhecidos – e cada vez mais questionados. Integrantes do grupo favorável à liberação sustentam que a proibição, por si só, não inibe o consumo do produto. Dizem ainda que a venda ilegal poderia expor consumidores ao uso de produtos de qualidade duvidosa e que cigarros eletrônicos podem ajudar pessoas a pararem de fumar cigarros tradicionais. Por fim, asseguram que se o cigarro eletrônico fosse liberado, os recursos hoje destinados ao comércio ilegal poderiam ser destinados para arrecadação de impostos. O Brasil, portanto, ganharia.
Se tal mudança fosse feita, o Brasil se juntaria a um grupo de 55 países que hoje permitem a venda de cigarros eletrônicos.
Um olhar mais aprofundado nos estudos reunidos durante a discussão há duas semanas na Anvisa, contudo, mostra que a descrição feita por defensores do comércio de cigarros eletrônicos vai em direção oposta às conclusões das pesquisas e, ainda, do que vem ocorrendo na prática em outros países.
Relator do tema, o presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, apresentou em seu voto alguns dados que mostram o quanto seria preocupante a liberação. Eis um trecho do voto do diretor sobre o impacto dos dispositivos eletrônicos de fumar entre jovens na Irlanda, país onde o comércio é permitido:
“A prevalência de uso de cigarros eletrônicos na Irlanda aumentou em adolescentes de 16 anos, como mostra estudo que analisa pesquisas realizadas em 2015 e 2019. Além do aumento da prevalência de uso corrente de 10% para 18%, os pesquisadores indicam que 2/3 dos usuários nunca tinham fumado cigarro convencional quando usaram o primeiro cigarro eletrônico e que o mesmo percentual iniciou o uso por curiosidade. Apenas 3% iniciaram o uso de cigarro eletrônico com a intenção de parar de fumar cigarros convencionais”.
No voto, o relator observa ainda que em revisões sistemáticas realizadas pelo governo irlandês constatou-se haver “uma chance de 3,7 a 4,06 vezes de adolescentes de 13 a 19 anos iniciarem o uso de cigarro convencional, quando utilizam cigarro eletrônico na linha de base”.
Barra Torres traz também relatos de experiências de outros países. E, por fim, resume: “Diante do cenário internacional apontado, percebe-se que a prevalência de uso de DEF em países que permitem a sua comercialização tem aumentado e se tornado fator de grande preocupação, principalmente com relação ao uso pelos mais jovens. Verifica-se também que países que permitem a comercialização de DEF precisam lidar com o comércio ilícito destes produtos e com o acesso indevido por adolescentes, apesar da existência de regulamentações que proíbam tal acesso. Independentemente da estratégia regulatória adotada para permitir a comercialização, estas não se mostram efetivas para conter o uso indiscriminado e o acesso, principalmente pelos mais jovens”.
A diretora Meiruze Freitas também traz exemplos do impacto dos produtos na Austrália, na França e ainda para o meio ambiente. O argumento de que a permissão do comércio poderia reduzir o contrabando também é abordado pela diretora.
Em seu voto, ela destaca a resposta enviada pelo Ministério da Justiça à Anvisa. E ressalta: “A Polícia Rodoviária Federal sustenta que não há razão para crer que, uma vez permitida a comercialização de DEFs no Brasil, haveria diminuição do contrabando. Pelo contrário, entendem que, assim como ocorre com outros produtos já proibidos no país, anteveem uma tendência de aumento drástico no contrabando caso venha a haver opção pela regulamentação da liberação dos DEF, num ciclo vicioso de aumento de consumo, com aumento de contrabando, prejudicando sobremaneira o sistema de saúde”.
O diretor Romison Mota, por sua vez, chama a atenção para importância de intensificar a fiscalização do comércio ilegal e ampliar campanhas de conscientização.
Um dos argumentos que sempre animam o debate e tentam colocar em campos opostos saúde e economia também é tratado pelo relator Barra Torres. O diretor cita estudos que mostram que problemas de saúde provocados por doenças relacionadas ao tabaco trazem um custo de R$ 57 bilhões para o sistema de saúde brasileiro:
“Certamente esses custos são ainda maiores, pois não incluem os gastos com ações de prevenção e tratamento para cessação do tabagismo, nem de prevenção e mitigação dos danos sanitários, sociais e ambientais decorrentes da produção de tabaco e do mercado ilegal de tabaco. Considerando ainda que a população jovem brasileira se aproxima dos 50 milhões de indivíduos, e que o uso de DEF é mais alto em jovens, como mostram as prevalências, aliado ao fato de os DEF serem porta de entrada para o uso do cigarro convencional, como estariam as futuras gerações e o custo do tabagismo e consumo de nicotina nos próximos anos, caso a sua comercialização fosse permitida e estes produtos estivessem disseminados legalmente?”, questiona Barra Torres em seu voto.
Como o processo da Anvisa não se encerrou e há, ainda, a perspectiva de tramitação do projeto no Congresso, vale a pena olhar com atenção para os pontos destacados pelos diretores da agência reguladora. Três dos votos já estão disponíveis no site da Anvisa e merecem um olhar atento, sobretudo de parlamentares que ainda devem se debruçar sobre o tema. Revisões são sempre importantes, pois permitem reparar erros, reforçar pontos que foram deixados para trás e, ainda, manter estratégias que estão no caminho certo. Quanto mais nos amparamos em dados confiáveis, mais acertadas serão as decisões.