Um recente parecer do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina sobre a prescrição de medicamentos ou produtos à base de cannabis provocou inquietação entre médicos no estado e, em consequência, em outros pontos do país. Datado de junho, o documento afirma que a indicação da terapia somente pode ser feita por profissionais com especialidade de neurologia, neurocirurgia ou psiquiatria para tratamento de epilepsias refratárias às terapias convencionais.
Formulado a partir de uma pergunta que havia sido enviada ao conselho regional, o parecer transformou-se em sinal de alerta para profissionais de diversas especialidades que, ao longo dos últimos anos, passaram a prescrever medicamentos para tratamento de outros problemas, como dores crônicas, ansiedade e Parkinson.
“Na prática, ele intimida os médicos. E interfere na relação com o paciente”, afirma o presidente da Associação Brasileira da Indústria Canabinoide, Tarso Araújo.
O uso de produtos ligados à cannabis aumentou de forma inegável. Aos poucos, profissionais de saúde vêm se interessando sobre o tema e indicando-a a pacientes. A estimativa é que cerca de 5 mil profissionais receitem produtos à base de cannabis para seus pacientes.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou até o momento a comercialização de 19 produtos em farmácias e drogarias, sempre mediante apresentação da receita. Há também a possibilidade de importação. Em 2021, a agência autorizou 35.416 solicitações para uso pessoal, 189% a mais do que o registrado em 2020.
“Vivemos um momento de aumento de casos de ansiedade e muitos psiquiatras prescrevem medicamentos ou produtos canabinoides como ansiolíticos, em razão do baixo efeito colateral. Mas, diante de pareceres como esse, profissionais ficam apreensivos”, afirma Araújo.
O parecer do Conselho Regional de Santa Catarina tem como fundamento uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) publicada em 2014. À época, estava em curso no país uma discussão liderada por familiares de pacientes com epilepsia refratária para permissão da importação do produto no país. “A resolução representou um enorme avanço, foi muito comemorada”, recorda-se Araújo. A previsão inicial do próprio CFM era que a regra deveria ser revista, passados dois anos de sua publicação – o que não ocorreu.
Ao longo dos últimos anos, inúmeros trabalhos foram feitos sobre a indicação de produtos canabinoides para tratamento de outras doenças, muito além do uso compassivo para epilepsia refratária. Embora pesquisas tenham sido publicadas e o panorama tenha se alterado, somente em 2022 o processo de revisão teve início. Ainda assim, cercado de polêmica.
Uma consulta pública foi aberta no dia 1º de julho, pelo prazo de 20 dias. Um prazo considerado insuficiente, diante da complexidade do tema. Diante das reclamações, o CFM prorrogou o prazo por mais dez dias. “O processo foi mal divulgado, o formato apresentado não permitia anexar documentos, pesquisas”, avalia Araújo.
O CFM, no entanto, afirma que o processo foi feito da forma adequada. A entidade argumenta não haver um prazo específico para consultas públicas, que essa é uma decisão tomada de acordo com necessidades relacionadas a cada tema e que o prazo de 30 dias é compatível com outros órgãos públicos. Diz ainda não haver registros de queixas sobre a consulta e que somente depois da aprovação da resolução pelo colegiado do CFM será possível ter conhecimento sobre a reformulação da norma.
Para o presidente da associação da indústria, a rapidez da consulta, associada ao parecer catarinense, sinalizam um movimento de pouca receptividade à terapia por parte dos conselhos. Mais do que isso, trazem risco de colocar travas em processos de compras governamentais.
O que mais causa estranheza é o descompasso com decisões recentes. Diante das críticas de que muitos profissionais recomendavam – mesmo sem comprovação – o uso de cloroquina para pacientes com Covid-19, o conselho federal usou como argumento o princípio da autonomia do profissional. Mas isso não se aplica para produtos canabinoides. E a razão, segundo o CFM, é que há uma resolução sobre o tema que médicos são obrigados a seguir. Mesmo sendo defasada e com revisão atrasada há seis anos.