Opinião e Análise

Fernando Aith

Piso constitucional para financiamento de ações e serviços públicos do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/SUS">SUS</a>) é garantia constitucional fundamental protegida pelo princípio da progressividade dos direitos humanos reconhecido pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.
Circula na imprensa brasileira a notícia de que o atual governo federal deseja encaminhar ao Congresso Nacional, no segundo semestre deste ano, uma proposta de emenda constitucional com a finalidade de desvincular as receitas orçamentárias atualmente destinadas ao financiamento dos serviços públicos de saúde e de educação no Brasil. 
Os pisos constitucionais fixados, respectivamente, pelos artigos 198 e 212 da Constituição Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao-federal">CF</a>) de 1988 garantem a proteção de um financiamento mínimo para a saúde e educação e fazem parte do sistema de proteção social desenhado pela CF, sendo estratégicos para o desenvolvimento nacional e para a garantia da dignidade humana dos brasileiros. A alteração da lógica de vinculação orçamentária para a saúde e a educação, nesse momento pós-pandemia do Brasil (que tantos retrocessos trouxe justamente a essas duas áreas sociais), viola frontalmente os princípios da progressividade e da vedação de retrocesso social que orientam a proteção internacional dos direitos humanos. Reduzir recursos orçamentários constitucionalmente assegurados para saúde e educação contraria tratados internacionais ratificados pelo Brasil, em especial o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, configurando-se, assim, como proposta potencialmente inconstitucional. 
O princípio da progressividade que rege os direitos sociais implica naturalmente a vedação do retrocesso social, ou seja, os Estados devem aumentar progressivamente a proteção dada a esses direitos, nunca diminuir. A história brasileira de financiamento de direitos sociais, em especial do direito à saúde, não nos permite repetir os mesmos erros do passado, e menos ainda agravar os erros do presente. O subfinanciamento crônico do SUS, desde sua criação, é fonte de inúmeros textos de literatura científica no país e já foi, inclusive, tema desta coluna. Não se pode perpetuar ou aprofundar o subfinanciamento crônico do SUS em nome de um suposto equilíbrio fiscal, que pode muito bem ser alcançado por outras estratégicas orçamentárias e fiscais. 
Não devemos esquecer que, antes do advento da Emenda Constitucional n. 29/2000, o SUS vivia a penúria da alocação anual de recursos orçamentários, no âmbito do Orçamento da Seguridade Social. Naquele contexto, o SUS disputava com a ultradeficitária previdência social os parcos recursos sociais destinados à seguridade social no país. Quem não se lembra dos esforços de Adib Jatene para conseguir melhorar o orçamento do Ministério da Saúde, inclusive com a criação da hoje extinta Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF)? Como negar que, desde a promulgação da Emenda Constitucional (EC) n. 29/2000, o orçamento público na área da saúde subiu da ordem de R$ 121 bilhões em 2003 para R$ 265,6 bilhões em 2017 (IPEA, 2018)? 
Além disso, ao se abandonar a proteção dada pela vinculação orçamentária prevista pela CF, várias questões emergem: quem pode garantir que União, estados, Distrito Federal e municípios, livres da vinculação orçamentária, manterão o financiamento da saúde em níveis adequados? Como garantir que a desvinculação orçamentária não representará um retrocesso social na área da saúde, agravando o já crônico subfinanciamento do SUS? Que instrumento jurídico será dado em troca para garantir o financiamento progressivo do SUS pela União, estados, Distrito Federal e municípios, em um ambiente político polarizado e dominado pela política de resultados rasos e horizonte curto? 
Também importante lembrar que tal proposta será objeto de intensos debates no campo jurídico-constitucional. Isso porque o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil, protege expressamente o direito à saúde, afirmando em seu artigo 12.1 que “1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental”. Lógico que para que isso ocorra, é necessário garantir financiamento permanente, adequado, suficiente e tempestivo às necessidades de saúde da população, a fim de garantir, concretamente, que toda pessoa desfrute do mais elevado nível possível de saúde física e mental. Ainda, em seu artigo 2.1, o Pacto estabelece que “cada Estado Parte do presente Pacto se compromete a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. 
O que se depreende do texto ratificado internamente pelo Brasil é que, uma vez adotada uma medida legislativa (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm">EC 29/2000</a>), não poderá o Estado retroceder na proteção aos direitos sociais até que as condições de efetivação destes direitos estejam em um patamar adequado que permita a retirada de garantias sem prejuízo do respeito aos direitos sociais reconhecidos pelo Pacto. Certamente, não é essa a realidade brasileira neste outono de 2023, onde as deficiências na efetivação do direito à saúde no Brasil são ainda explícitas e obscenas.
Um retrocesso social no financiamento público do SUS é impensável no país nos dias atuais. Não se pode conceber a retirada dessa importante proteção constitucional no Brasil do pós-pandemia, com seu surto epidêmico de saúde mental e com seu represamento de cirurgias eletivas; no Brasil, onde ainda se morre de doenças infectocontagiosas ao mesmo tempo em que se vê o aumento das incidências de diferentes tipos de cânceres, da hipertensão, da diabetes e a emergência de doenças raras de custos altíssimos de tratamento; no Brasil das filas intermináveis do SUS para procedimentos básicos e essenciais, incluindo exames diagnósticos; no Brasil dos desertos sanitários, onde faltam médicos, insumos, medicamentos e muito mais; no Brasil que ainda convive com hanseníase, tuberculose, sarampo; no Brasil que vê o fantasma do retorno da poliomielite e onde as coberturas vacinais estão em queda; no Brasil que possui um sistema público de saúde, universal e igualitário e que necessita de forte investimento econômico do Estado.
O direito à saúde é um direito constitucional assegurado pelos artigos 6º e 196 a 200 da Constituição. Sua efetivação depende de financiamento público adequado, sobretudo porque a principal garantia desse direito chama-se Sistema Único de Saúde, um sistema que depende de investimentos do Estado brasileiro para se estruturar e funcionar. Flertar perigosamente com a ideia de desvinculação orçamentária de direitos sociais estratégicos para o desenvolvimento nacional, como a saúde e a educação, é algo que não se imaginava para um governo progressista, razão pela qual espera-se que a atual gestão federal tenha criatividade suficiente para encontrar formas de equilíbrio orçamentário e fiscal que não penalizem, ainda mais, a já precária estrutura de proteção social construída a duras penas no Brasil nos últimos 35 anos. 
Caso tal ideia siga adiante, deve-se analisar com cautela sua constitucionalidade diante dos compromissos internacionais de proteção dos direitos humanos assumidos pelo Brasil, em especial devido ao fato de que, de acordo com o artigo 5º, §3º, da CF, “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. 
Desvincular receita orçamentária para as áreas da saúde e educação é retrocesso, não é progressividade.

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JOTA

Um retrocesso social no financiamento público da saúde e da educação é impensável no país nos dias atuais

Vinculação orçamentária para financiar SUS é garantia fundamental do direito à saúde

Um retrocesso social no financiamento público do Sistema Único de Saúde (SUS) é impensável no país nos dias atuais.