Opinião e Análise

Fernando Aith

No último dia 5, a Organização Mundial da Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/OMS">OMS</a>) declarou o fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional da pandemia da Covid-19. O anúncio ocorreu mais de três anos depois que a pandemia foi decretada pela entidade, em 30 de janeiro de 2020. A estimativa é que o coronavírus infectou, neste período, aproximadamente 690 milhões de pessoas ao redor do mundo, levando à morte quase 7 milhões de seres humanos, conforme os dados da John Hopkins University coletados até março de 2023. 
No Brasil, a pandemia foi especialmente letal. Com mais de 37 milhões de pessoas infectadas, a covid-19 matou mais de 700 mil pessoas no país. Vale dizer que atualmente o coronavírus ainda mata em torno de 300 pessoas por semana em território nacional, fato que atesta que, embora não estejamos mais em Emergência de Saúde Pública, o vírus ainda representa uma ameaça e um grande problema de saúde pública no país.
Conforme muito bem destacado pela atual ministra da Saúde, Nísia Trindade, em pronunciamento realizado em rede nacional, embora a população brasileira represente apenas 2,7% da população do mundo, o número de mortos pelo coronavírus no país representa 10% do total de pessoas que perderam a vida. Triste quadro de um passado recente, que não pode se repetir no futuro.
Esse triste quadro nacional não aconteceu do nada. Foi fruto de uma das piores gestões da pandemia no mundo, capitaneada por um governo federal negacionista, insensível e irresponsável. Conforme muito bem documentado no estudo “Direitos na Pandemia”, realizado pelo Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP em parceria com a Conectas, coordenado por mim e pelas  Professoras Deisy Ventura e Rossana Reis, o alto número de casos e mortes verificados no Brasil teve como causa determinante a péssima gestão da pandemia no país, em especial no que se refere ao que seriam as responsabilidades do Governo Federal. 
Sob a batuta do então presidente da República, foi adotada no nível federal uma política negacionista da pandemia, que se recusou a adotar as medidas de saúde pública preconizadas pela OMS, incentivou e promoveu aglomerações, patrocinou tratamentos ineficazes, recusou auxílio aos povos indígenas e aos grupos vulneráveis o quanto pôde, desdenhou dos que tinham medo de morrer, recusou a compra de vacinas em momento estratégico, divulgou notícias falsas sobre os efeitos colaterais das vacinas, etc. 
A gestão catastrófica e irresponsável da pandemia foi também amplamente documentada pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal que apurou as ações e omissões do governo federal durante o período. O relatório final da CPI recomendou o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro pela prática de nove infrações: prevaricação, charlatanismo, epidemia com resultado morte, infração a medidas sanitárias preventivas, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime, falsificação de documentos particulares, crimes de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo) e crimes contra a humanidade (nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos).
Além do ex-presidente, o relatório também identificou infrações penais cometidas por três filhos do ex-presidente, além de duas empresas, a Precisa Medicamentos e a VTCLog, e mais outras 74 pessoas, dentre elas deputados, empresários, jornalistas, médicos, servidores públicos, ministros e ex-ministros de Estado.  
O fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional não significa que esta página da nossa triste história esteja virada. É preciso agora iniciar um movimento pela memória, verdade, Justiça, reparação e não-repetição, para que possamos de fato aprender com os erros do passado para não os repetir no futuro, além de oferecermos aos brasileiros uma resposta adequada que faça justiça a tantas perdas, tantas sequelas, tanto sofrimento.
O movimento pela memória deve documentar adequadamente tudo que se passou, lembrando de forma digna e respeitosa de todos os mortos durante o período, prestando tributos aos profissionais de saúde, aos profissionais dos setores de alimentos e a todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para reduzir o sofrimento e o número de mortes e sequelas no país.
O movimento pela verdade deve documentar de forma sistemática e consequente o que foi a resposta brasileira à pandemia, identificando as condutas dos agentes públicos e privados que amplificaram os efeitos da pandemia no país e foram corresponsáveis para a tragédia vivida, causando mortes evitáveis, recusando-se a observar as regras de conduta necessárias para evitar a disseminação do vírus, difundindo notícias falsas sobre o vírus e as vacinas, incitando as pessoas a desrespeitarem as medidas sanitárias preconizadas pela OMS e pelas autoridades estaduais e municipais, negando o devido apoio aos grupos vulneráveis, em especial os povos indígenas, a população manauara e os idosos.
O movimento pela justiça deve acompanhar de perto os desdobramentos jurídicos dos indiciamentos realizados pela CPI do Senado, além de outras ações jurídicas cabíveis para a responsabilização dos que contribuíram para o agravamento da crise sanitária. As provas documentais reunidas são bastante contundentes e devem ser analisadas e encaminhadas pelos órgãos competentes para que se apure, com rigor e detalhamento, de forma individualizada, as responsabilidades por todos os erros culposos e dolosos cometidos ao longo da gestão da pandemia por autoridades públicas federais, estaduais e municipais.
Essa tarefa está não só na mão da Procuradoria-Geral da República (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/PGR">PGR</a>), mas também sob responsabilidade dos Ministérios Públicos estaduais e demais órgãos de controle. De crimes contra a vida à corrupção, de charlatanismo à prevaricação, de falsificação de documentos a crimes contra a humanidade, são muitos os desdobramos jurídicos a serem dados para a devida responsabilização de todos os que contribuíram com a grande tragédia nacional vivida durante a pandemia.
O movimento pela reparação deve identificar todos aqueles que sofreram prejuízos injustificáveis e desproporcionais decorrentes da gestão irresponsável da pandemia no Brasil, promovendo atos de reparação diversos. A reparação deve abarcar não só danos materiais e morais sofridos, mas também reparações afetivas e históricas com relação a todos os que foram insultados e agredidos por tanta violência em período que já era uma violência em si mesma. 
Finalmente, o movimento de não repetição deve se organizar para aprender com tudo o que vivemos e passamos, para promover os ajustes e arranjos político-jurídico-institucionais necessários para que, em uma eventual próxima crise sanitária, o Brasil não figure, novamente, entre as nações que pior se protegeu e que mais sofrimento viveu.
Embora a Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional com relação à Covid-19 tenha acabado, o Brasil ainda vive a emergência de adotar as medidas corretas para se tornar um país que respeite as vidas, que valorize a saúde pública e que promova a solidariedade e o humanismo como valores sociais.

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JOTA

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