Opinião e Análise

Fernando Aith

Pouco antes de sua aposentadoria, a ex-ministra do Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/10-fatos-que-marcaram-a-trajetoria-da-ministra-rosa-weber-no-stf-02102023">Rosa Weber</a> publicou seu voto no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 442/DF (ADPF 442), que questiona a validade constitucional dos artigos 124 e 126 do Código Penal. Estes artigos criminalizam a interrupção voluntária da gravidez (aborto).
Rosa Weber, com a coragem que se requer de ministros da Suprema Corte, enfrenta a questão com argumentos sólidos sintetizados em quatro premissas jurídicas: i) direito à vida e seu âmbito de proteção no constitucionalismo, ii) direitos fundamentais das mulheres, iii) direitos sexuais e reprodutivos como direitos fundamentais e iv) justiça social reprodutiva.
O voto procura, a todo momento, de forma responsável e racional, valorar se a tutela penal é uma resposta adequada e efetiva à proteção da dignidade da vida humana, analisando se a Constituição Federal de 1988 (CF 88) teria recepcionado ou não os arts. 124 e 126 do Código Penal.
Inicialmente, o voto tece considerações sobre as razões que levam o Supremo Tribunal Federal a decidir sobre o estatuto jurídico da interrupção antecipada da gravidez. Argumenta que a representatividade popular é aspecto central da democracia, e que o Poder Legislativo tem protagonismo para debates sobre temas legislativos. Todavia, conforme argumenta Rosa Weber, outro aspecto fundamental das democracias liberais é a sujeição dos Poderes a regras e princípios fundamentais em uma Constituição. A Constituição define os limites da atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, indicando que o conteúdo das leis e demais atos do Poder Público devem ser consistentes e alinhados com os limites fixados na Constituição.
Em seu voto, Rosa Weber argumenta que “assim como em praticamente todas as democracias liberais (com raras exceções das democracias puramente majoritárias), também na democracia brasileira a função de controlar as leis e atos do poder público para garantir que elas estejam em conformidade com a Constituição é exercida por órgão independente daqueles responsáveis por aprovar as leis. Isso é importante porque a democracia não se resume à regra da maioria. Na democracia, os direitos das minorias são resguardados, pela Constituição, contra prejuízos que a elas (minorais) possam ser causados pela vontade da maioria. No Brasil essa tarefa cabe ao Supremo Tribunal Federal.”
Essa argumentação é fundamental neste momento em que o Congresso Nacional procura deslegitimar a atuação do STF como guardião da Constituição e protetor das minorias em nosso país.
Além disso, Rosa lembra que a Constituição também afirma, no art. 5o, XXXV, que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário e que, como consequência disso, se uma questão jurídica é apresentada ao Poder Judiciário por qualquer pessoa que tenha legitimidade para tanto, o Poder Judiciário é obrigado a enfrentá-lá.
Na coluna de hoje destaco os pontos essenciais do voto de Rosa Weber.
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<li>Direito à vida e seu âmbito de proteção no constitucionalismo </li>
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Já no começo Rosa Weber enfrenta o cerne da controvérsia: a inexistência de consenso a respeito de quando inicia a vida. O voto lembra que o conhecimento cientifico até o momento permite falar sobre “critérios para definição de vida em nível celular, mas não de vida humana”. Essa distinção é fundamental para que se retire o debate do campo moral e religioso, deslocando-o para o campo racional e de proteção dos direitos fundamentais que deve vigorar em democracias modernas.
A CF 88 garante a todos o direito à vida em seu art. 5º e o grande argumento trazido pela ex-ministra refere-se à análise das propriedades da regra constitucional no que diz respeito à titularidade dos direitos fundamentais. De fato, não há referência em qualquer passagem do texto constitucional aos não nascidos, seja na condição de embrião ou de feto. Na mesma linha, destaca que todo o sistema de proteção da ordem social, referente à família, criança, adolescente e idoso igualmente supõe a pessoa humana nascida como titular dos direitos fundamentais garantidos, sem qualquer ressalva ao nascituro ou embrião.
Assim, conclui a ex-ministra que o conceito de vida é entendido, no âmbito do Direito Constitucional, como direito atribuído às pessoas nascidas, titulares de direitos fundamentais, cuja proteção é incremental, a depender da relação com outros direitos.
A proteção do nascituro, considerada a expressão do valor da vida humana em potencial, não coincide com o regime jurídico dos direitos fundamentais, seja quanto ao critério da titularidade seja quanto ao âmbito de proteção. Daí porque, argumenta Rosa Weber em seu voto, “o argumento em si de ponderação entre direitos do feto e da mulher gestante, no caso da interrupção voluntária da gestação, é equivocado. O que há é ponderação entre valores constitucionais de proteção”.
Rosa Weber conclui essa parte de seu voto trazendo elementos do direito internacional, demonstrando que tanto no âmbito da Convenção Americana de Direitos Humanos quanto no âmbito da Comissão Europeia de Direitos Humanos, a interpretação é no sentido de que os termos “todos”, “qualquer pessoa” e “vida” não tomam em consideração o nascituro, mas as pessoas nascidas.
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<li>Direitos das mulheres: da cidadania de segunda classe à autodeterminação igualitária</li>
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A segunda grande premissa utilizada no voto da ex-ministra do STF é a de que há a necessidade de afastar estigmas históricos, culturais, sociais, profissionais e jurídicos no que diz respeito aos direitos das mulheres. Argumenta que, não obstante os passos dados na direção da igualdade como reconhecimento, ainda não foi efetivada a reivindicação da cidadania igualitária entre os gêneros para o exercício dos direitos fundamentais, em particular no que diz com a autodeterminação como elemento estruturante da dignidade da mulher.
Segundo Rosa Weber, “a título de proteção da mulher na sua dimensão biológica mais distintiva, a gestação, e sob o véu da legalidade aparente, encobrem-se autênticas discriminações que impõem papeis sociais às mulheres, sem qualquer margem de respeito e consideração à sua liberdade e autodeterminação pessoal, afastando-as da cidadania plena e igualitária na construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária”.
Segundo a ex-ministra, para algumas mulheres, a gravidez e o parto podem implicar doenças físicas e estresse máximo que alteram a vida ou até mesmo provocam a morte, em razão dessas alterações.
Assim, compete à mulher, na fruição de seus direitos fundamentais, tomar a decisão pela maternidade, por meio da gravidez ou por outras fórmulas, à exemplo da adoção. Portanto, a maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Em brilhante síntese, afirma que “impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas”.
E finaliza dizendo que ao Estado compete respeitar as liberdades individuais da mulher.
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<li>Dos direitos sexuais e reprodutivos no desenho constitucional: direitos fundamentais estruturantes da justiça social reprodutiva</li>
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Na fundamentação da terceira premissa apresentada em seu voto, Rosa Weber traz o direito à saúde como argumento central. Ressalta o caráter ambivalente do direito fundamental à saúde consagrado na Constituição Federal, que apresenta aspectos ao mesmo tempo de direito individual e social, de direito de defesa e de proteção, de direito subjetivo e prestacional.
Assim, de um lado, deve-se assegurar a não interferência e ingerência na integridade física e mental da pessoa, salvo justificada a restrição (incidência do princípio da proporcionalidade). De outro, deve- se assegurar a promoção de políticas públicas indispensáveis à tutela adequada do direito, na vertente prestacional que exige.
Mais do que uma orientação, tais comandos encerram verdadeiro dever de agir positivamente. A proteção da saúde, adequadamente considerada como norma principiológica, consiste em proposição objetiva, deontológica e teleológica
Rosa Weber então apresenta três argumentos centrais a justificar que a criminalização do aborto não se mostra compatível com a Constituição Federal: “Primeiro, porque o exercício da sexualidade e da reprodução são elementos constitutivos do direito à saúde. Segundo, os conteúdos desde já́ decididos pelo Poder Constituinte – aquilo que o Poder Constituinte, representante primário do povo soberano, textualmente decidiu retirar da esfera de avaliação e arbítrio do Poder Legislativo, representante secundário do povo soberano – podem ser afirmados, sem necessidade de intermediação política, na medida em que direta e necessariamente extraídos da cláusula constitucional do direito à saúde tomada como princípio. Terceiro, o direito ao planejamento familiar densifica expressamente a tutela dos direitos reprodutivos, cuja regulamentação legal se deu com a Lei n. 9.263/1996, com modificação recente introduzida pela Lei n. 14.443/2022”.
A ex-ministra afirma ainda que a intervenção estatal, da perspectiva constitucional, deve se dar por meio de políticas públicas necessárias à concretização da justiça social reprodutiva e não por meio da criminalização da decisão da mulher. Finaliza este ponto afirmando que “a criminalização do ato não se mostra como política estatal adequada para dirimir os problemas que envolvem o aborto, como apontam as estatísticas”. 
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<li>A criminalização do aborto responde ao dever de tutela da vida humana? Justifica-se frente à restrição dos direitos fundamentais das mulheres?</li>
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Em sua parte final, o voto de Rosa Weber defende que a criminalização do aborto se revela irracional sob a ótica da política criminal, ineficaz, do ponto de vista da pratica social, e inconstitucional, da perspectiva jurídica. O voto traz à luz a centralidade que assume a estrutura institucional da justiça social reprodutiva como tutela adequada e suficiente para a proteção do elemento em comum na discussão do aborto, que é a dignidade da vida humana, seja da perspectiva das mulheres, seja da perspectiva do valor intrínseco que assume para a sociedade e o estado constitucional. Por essa razão, a justiça social reprodutiva constitui a quarta premissa do voto.
Finalizando o voto, Rosa Weber interpreta como possível a declaração de inconstitucionalidade, ou de não recepção, de diplomas normativos conflitantes com os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. E conclui, portanto, que a tipificação penal do aborto viola a CF 88 e seus princípios basilares.
Do voto da Rosa exala o doce aroma da liberdade e pleno respeito aos direitos fundamentais. Que seus colegas de STF tenham a sabedoria de seguir o caminho já indicado neste histórico voto.

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JOTA

Voto contra a criminalização do aborto exala o doce aroma da liberdade e do respeito aos direitos fundamentais

O voto de Rosa Weber pela vida, pela saúde e pelas mulheres

Voto contra a criminalização do aborto exala o doce aroma da liberdade e do respeito aos direitos fundamentais