Opinião e Análise

Fernando Aith

O <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">Sistema Único de Saúde</a> (SUS) constitui uma das melhores inovações da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">Constituição Federal (CF) de 1988</a>. Imaginado para ser a grande garantia do direito à saúde no Brasil e para organizar a forma como o Estado brasileiro cumprirá o seu dever de promoção, proteção e recuperação da saúde no país, o SUS convive desde sua criação com o desafio de ser único.
O conceito constitucional do SUS, que o define como único, encontra-se no Art. 198 da CF: “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”. A ideia, portanto, é a de reunir todas as ações e serviços públicos de saúde prestados pelo Estado brasileiro, em todas as suas esferas, em um único sistema. Esse Sistema Único é orientado por princípios, diretrizes e regras próprias, responsáveis por articular todas as ações e serviços públicos de saúde prestados por União, estados, Distrito Federal e municípios em uma só rede hierarquizada e regionalizada de ações e serviços de saúde.
Algumas pedras encontram-se no caminho deste Sistema Único idealizado pelos nossos constitucionalistas, representando enormes desafios de gestão.
Inicialmente, a mesma CF define o Brasil como uma República Federativa formada pela União indissolúvel dos estados, municípios e Distrito Federal. O federalismo brasileiro surgido em 1988 elevou os municípios à categoria de entes federativos autônomos, tornando ainda mais complexa a tarefa de unicidade do SUS. Isso porque os entes federativos possuem autonomia política, administrativa e financeira para organizarem as suas redes de serviços públicos de saúde da forma como julgarem mais adequada. Considerando que a competência para “cuidar da saúde” é comum entre os entes federativos, significa dizer que cada estado, cada município, podem organizar suas redes de serviços de saúde da forma que lhes aprouver.
Assim, de início, o SUS já nasce com uma fragmentação federativa enorme. Ele se diz único, mas na verdade é resultado da somatória do Sistema Federal de Saúde, mais 26 Sistemas Estaduais de Saúde, mais o Sistema de Saúde do Distrito Federal, mais 5.570 Sistemas Municipais de Saúde. O Sistema Único de Saúde é formado, no final das contas, por 5.598 subsistemas autônomos de saúde, cada qual com sua autonomia política, administrativa e financeira.
Para equacionar essa miríade de sistemas, foram criados sofisticados instrumentos de articulação federativa, tais como as Comissões Intergestores Bipartite (uma em cada Estado), a Comissão Intergestores Tripartite, e as Normas Operacionais pactuadas entre os entes federativos e publicadas na forma de Portarias normativas. Nessas pactuações, definem-se as responsabilidades de cada ente federativo para com o SUS, sendo que, grosso modo, aos municípios cabe cuidar da atenção básica, aos estados da média e alta complexidade (quando possível) e à União da alta complexidade e de programas nacionais estratégicos. Além disso, União e estados devem apoiar os municípios que não conseguirem cuidar adequadamente de sua atenção básica, e a União deve apoiar os estados que não puderem cuidar de suas redes, em especial da atenção de média e alta complexidade.
Como se vê, em um país onde as divisões políticas são determinantes sobre se o federalismo será ou não cooperativo, o desafio de ser único do SUS enfrenta obstáculos enormes que devem ser enfrentados dia após dia, de forma republicana e baseada nas melhores práticas administrativas e evidências científicas.
Não bastasse a fragmentação federativa acima ilustrada, o SUS ainda enfrenta um outro desafio enorme para manter a sua unicidade. A autonomia administrativa de cada ente federativo permite que cada qual organize o seu subsistema de saúde da forma que julgar mais conveniente, seja organizando os serviços no âmbito da administração direta, seja criando instituições estatais da administração indireta, seja terceirizando os serviços para parceiros privados (organizações não governamentais, organizações sociais, cooperativas, associações civis, empresas e hospitais privados etc.).
A depender do tipo de organização do serviço, incidirá sobre o serviço público de saúde um regime jurídico específico que vincula a gestão, a contratação de pessoal, as compras de bens, materiais e insumos, o controle social, dentre outros aspectos relevantes para o serviço público de saúde. Serviços públicos de saúde prestados pela administração direta, autárquica ou fundacional autárquica estarão sujeitos ao regime jurídico de direito público (concursos, lei de licitações e contratos, controle social, teto salarial etc. Serviços públicos de saúde prestados pela administração indireta na forma de empresas públicas, sociedades de economia mista, serviços sociais autônomos ou fundações estatais de direito privado estarão submetidos ao regime jurídico de direito privado, portanto livre de muitos dos controles do regime jurídico de direito público, mas ainda assim devendo respeitar os princípios da administração pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, por exemplo).
Essa característica do SUS possibilita que, dentro de cada ente federativo, se tenha serviços públicos de saúde prestados por diferentes regimes jurídicos, com profissionais contratados de diferentes formas, com diferentes remunerações e carreiras e com instituições com diferentes vínculos ao gestor único do sistema em cada ente federativo.
A fragmentação federativa e institucional do SUS real é um desafio enorme à sua vocação de ser único. Para que a ideia de unicidade dê certo, é preciso reforçar os valores republicanos, a saúde como um direito a ser perseguido por todo e qualquer gestor público e, sobretudo, a noção de federalismo cooperativo.
Manter em pé um Sistema com tais qualidades e desafios não é fácil, mas é fundamental para a proteção do direito à saúde e representa um enorme avanço civilizacional que o Brasil precisa perseguir. A pandemia mostrou a importância do SUS para a vida dos brasileiros, e também nos deu uma boa amostra de como o SUS perde em eficácia quando União, estados, DF e municípios não atuam em consonância com o princípio constitucional do federalismo cooperativo.
Consolidar a democracia e os bons ideais republicanos no Brasil é parte indissociável da construção de um SUS realmente único.

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JOTA

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