Opinião e Análise

Fernando Aith

O processo de positivação jurídico-normativa e posterior constitucionalização dos direitos e liberdades públicas democráticas teve seu início mais visível na Inglaterra, com a Petição de Direitos, de 1628, seguida da Declaração de Direitos, de 1689 e num conjunto de atos editados pelo Parlamento inglês em defesa das liberdades individuais, entre os quais o célebre Habeas Corpus Act, de 1679.
A tradição inglesa, depois americana, e em seguida francesa, iria qualificar de constitucionais esses direitos e liberdades fundamentais reconhecidos a cada cidadão numa determinada ordem jurídica individual e concreta. Essas liberdades constituem-se como "direitos de defesa" do cidadão face ao Estado de que são nacionais, para evitar abusos de poder e ingerência indevida na esfera privada do indivíduo.
Nas primeiras Constituições modernas, também conhecidas como “Constituições da liberdade”, como as designava Montesquieu no século 18, os direitos e liberdades fundamentais vinham concebidos como limites intangíveis à intervenção dos poderes públicos na vida dos cidadãos. Sob esse ponto de vista, as disposições da Petição de Direitos inglesa, ou da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), ou ainda das Constituições que as seguiram em numerosos países, não representavam senão uma enumeração mais ou menos exaustiva dos domínios da liberdade privada em que a decisão dos poderes públicos não poderia penetrar. Traduziam-se, quanto ao Estado, numa obrigação de não fazer.
O desenvolvimento dos Estados modernos trouxe para as Constituições, já no século 20, a proteção dos direitos sociais, que demandam uma obrigação de fazer do Estado. Os direitos sociais implicam em obrigações de solidariedade devidas pelos agentes públicos que atuam no Estado e pelo conjunto dos membros do corpo social. Os direitos sociais passaram, nos Estados modernos, a ser também considerados como direitos fundamentais. Assim, os direitos fundamentais são direitos constitucionais, que não devem em primeira linha ser compreendidos tão somente como direitos que limitam o poder do Estado. Devem antes ser compreendidos e entendidos como elementos definidores e legitimadores de toda a ordem jurídica positiva, que orientam a ação estatal. Proclamam uma cultura jurídica e política determinada, um concreto e objetivo "sistema de valores".
O exercício dos direitos e liberdades fundamentais é diretamente relacionado, assim, às determinações expressas na Constituição, pois esta funda e dá forma a um regime político, orientado por determinados princípios, definindo os poderes de governo e o estatuto dos cidadãos no Estado. As liberdades públicas, nos Estados democráticos modernos, são limitadas pela Constituição e pelas demais normas jurídicas do ordenamento (leis, decretos, portarias...).
A Constituição Federal de 1988 reconhece no caput do artigo 5º o direito à liberdade como um direito fundamental dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no país. O inciso II do mesmo artigo deixa claro que esse direito pode ser limitado pela lei, na medida em que determina que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. A liberdade é um princípio constitucional do Estado democrático de Direito brasileiro, e somente poderá ser limitada por motivos de interesse público manifestamente relevantes e expressamente definidos em lei. Assim, os motivos de interesse público capazes de limitar a liberdade individual serão definidos em lei (em sentido amplo) ou pela própria Constituição.
De outro lado, também com valor constitucional, a saúde foi reconhecida como um direito fundamental no Brasil, e um dever do Estado a ser protegido mediante ações e serviços públicos de saúde, considerados pela Constituição Federal como de relevância pública (artigos 196 e 197 da CF). Muitas vezes, para se proteger a saúde pública, é necessário limitar liberdades individuais.
Há, portanto, um delicado equilíbrio entre os direitos e liberdades individuais, o direito à saúde e a necessária proteção da saúde pública pelo Estado moderno. Esse equilíbrio deve ser encontrado por meio de debates públicos democráticos, amplos e informados, para que a sociedade possa, por meio de consensos, encontrar o melhor equilíbrio possível entre as liberdades fundamentais e a proteção do direito à saúde.
No Brasil, esse debate perpassa vários aspectos importantes do dia a dia dos cidadãos, às vezes com sérias controvérsias, valendo lembrar de alguns casos recentes que servem para ilustrar de que forma esse equilíbrio vem sendo construído.
O primeiro exemplo que vale ser lembrado é o da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9294.htm">Lei 9.294/1996</a>, que proibiu o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo, privado ou público, salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente.
Quando essa lei foi aprovada, houve uma enxurrada de ações judiciais pedindo a inconstitucionalidade da lei em nome da liberdade. Neste caso, defendia-se a liberdade de fumar onde quiser mesmo que isso significasse risco à saúde pública e de terceiros. Hoje é impensável imaginar que, um dia, já foi permitido no Brasil fumar em aviões, em salas de aula, em restaurantes, bares ou até em repartições do Estado abertas ao atendimento público.
O segundo exemplo é o da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503compilado.htm">Lei 9.503/1997</a>, que instituiu a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança em veículos. Como ocorreu com a lei que limitou a liberdade dos fumantes, vários brasileiros e associações civis foram à Justiça contra esta lei, clamando pelas suas liberdades. No caso, a liberdade de não usar cinto de segurança e se expor a riscos desnecessários no trânsito violento brasileiro. Hoje, o anacronismo de tal percepção do “direito de liberdade” é consenso democrático nacional, não havendo mais grandes controvérsias sobre o tema, pelos efeitos benéficos comprovados para a saúde pública e individual.
O delicado equilíbrio entre as liberdades e a saúde sempre irá movimentar debates públicos importantes. Atualmente, em decorrência da pandemia da Covid-19, estamos vivenciando no Brasil um perigoso retrocesso no que se refere, por exemplo, a um tema que já estava pacificado, que é o poder do Estado de exigir a vacinação obrigatória em nome do interesse público da saúde. Além desse aspecto, a pandemia também trouxe à baila outros debates, relacionados às limitações da liberdade necessárias para conter a disseminação do coronavírus, tais como a obrigatoriedade do uso de máscaras, as restrições a certas atividades sociais e econômicas para proibir aglomerações, dentre outras medidas não farmacológicas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/oms">OMS</a>).
Nesses momentos, as autoridades públicas devem assumir um papel de protagonismo em defesa do interesse público contra os interesses individuais que possam acarretar em riscos à sociedade, no caso inclusive riscos de mortes em massa. As liberdades individuais jamais podem ser usadas como instrumento ou justificativa para solapar ou reduzir a defesa dos interesses sociais e coletivos, principalmente quando em nome de uma falsa liberdade se deseja causar danos coletivos irreversíveis.
Democracia, participação, informação qualificada, livre circulação de ideias e governantes responsáveis e cientes de seu papel em defesa do bem comum e do interesse público são elementos essenciais para a proteção do direito à saúde e da vida nas sociedades de massa moderna. Nenhuma liberdade é absoluta; nas sociedades democráticas modernas não existe espaço para uma falsa liberdade de causar danos ou matar.
É preciso coragem para agir com racionalidade e fazer bom uso das evidências científicas para defender o que é certo no que se refere à proteção da saúde, mesmo que o certo seja, em um primeiro momento, uma medida socialmente impopular. Os exemplos do cinto de segurança, dos cigarros e das vacinas nos mostram isso.

cigarro

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JOTA

Os casos da proibição do cigarro em recinto coletivo, da obrigatoriedade do cinto de segurança e das vacinas

O delicado equilíbrio entre saúde e liberdades fundamentais

Saúde e liberdades fundamentais: Os casos da proibição do cigarro em recinto coletivo, da obrigatoriedade do cinto de segurança e das vacinas