Opinião e Análise

Fernando Aith

<p>O direito sanitário é o ramo da ciência jurídica que disciplina as ações e serviços de interesse à saúde, formado pelo conjunto de normas jurídicas, que tem como objetivos a redução de riscos de doenças e de outros agravos à saúde, bem como o estabelecimento de condições que assegurem o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde. Este campo específico do direito vem evoluindo sistematicamente desde a promulgação da Constituição de 1988 (CF 88).</p>
<p>Uma primeira evidência do crescimento do direito sanitário no Brasil nas últimas décadas revela-se pela quantidade de Emendas Constitucionais, leis, decretos, portarias e outros atos normativos publicados no Brasil para tratar direta ou indiretamente de assuntos relacionados com a efetivação do direito à saúde. Apenas para ficar no nível constitucional de evolução normativa, vale destacar as Emendas Constitucionais que trataram especificamente da saúde, tais como: EC 29/2000, que vinculou recursos orçamentários à saúde; EC 86/2015, que mudou a forma de vinculação orçamentária da União para a saúde; EC 63/2010, que inseriu diversos dispositivos para tratar dos agentes comunitários de saúde e dos agentes de combate às endemias; e EC 120/2022, que aprovou o piso dos vencimentos destes mesmos agentes.</p>
<p>Uma segunda evidência da evolução do direito sanitário pode ser percebida pelo fenômeno da judicialização da saúde, que vem crescendo exponencialmente no Brasil, reforçando o reconhecimento e a apropriação cidadã do direito à saúde no país e, ao mesmo tempo, pressionando o Estado brasileiro a melhorar os sistemas público e privado de saúde para que este direito seja de fato efetivado.</p>
<p>Uma terceira evidência do crescimento e da importância do direito sanitário ao longo destas décadas pode ser percebida pelos efeitos sociais destas inovações jurídicas, ou seja, pelos indicadores de saúde no Brasil. O reconhecimento da saúde como um direito e a sua efetivação ao longo dos anos (ainda que aos trancos e barrancos) teve resultados expressivos na melhoria das condições de saúde dos brasileiros. Neste curto período (em termos históricos), testemunhamos, por exemplo, o aumento da expectativa de vida, a redução da mortalidade infantil e a redução da mortalidade materna, dentre outros avanços relevantes em termos de proteção da saúde dos brasileiros.</p>
<p>O que já era percebido como um desenvolvimento sustentado e progressivo do direito da saúde no Brasil foi revolucionado com a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pandemia">pandemia</a> da Covid-19 nos anos de 2020 e 2021. Pesquisa realizada pelo Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP (Cepedisa-USP), em parceria com a Conectas Direitos Humanos e o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass), revelou que nos anos de 2020 e 2021 a União e os estados brasileiros publicaram mais de 20 mil normas jurídicas especificamente voltadas a organizar a resposta brasileira à pandemia.</p>
<p>Esta enorme quantidade de normas jurídicas, analisadas em seus conteúdos e consequências sociais e jurídicas, permitiram vislumbrar os impactos da pandemia sobre a evolução do direito sanitário no Brasil, bem como identificar alguns dos principais desafios que se apresentam para que o direito à saúde se torne um direito efetivo no país.</p>
<p>Destaca-se a seguir alguns dos principais impactos da pandemia da Covid-19 sobre o direito sanitário brasileiro, resultantes da intensa publicação de normas jurídicas nos âmbitos federal e estaduais, normas estas voltadas a organizar a resposta do Brasil à Covid-19 nos anos de 2020 e 2021.</p>
<h3><strong>Consolidação do STF como instituição republicana e democrática de defesa do direito constitucional à saúde</strong></h3>
<p>Desde o início da pandemia o Supremo Tribunal Federal foi provocado sucessivas vezes sobre temas sensíveis da resposta do Estado brasileiro à crise sanitária, tendo se posicionado de maneira firme e protetora do direito constitucional à saúde. Destaque-se as decisões que reafirmam a autonomia dos estados e municípios para legislar sobre saúde de forma mais protetora do que a União estava legislando; que obrigam o Poder Executivo federal a elaborar e colocar em prática políticas específicas de combate à pandemia junto aos povos indígenas; que obrigam o Poder Executivo federal a organizar e implantar a vacinação de crianças; que prorrogam a vigência da Lei 13.979/2020; ou ainda que obrigaram o Senado Federal a instalar a Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as condutas do governo federal e dos estados como resposta à pandemia.</p>
<h3><strong>Afirmação da autonomia dos entes federativos para legislar sobre saúde </strong></h3>
<p>Em abril de 2020 o STF reafirmou a competência de estados e municípios de tomar medidas com o objetivo de conter a pandemia do coronavírus. Desta forma, estes entes da federação podem determinar quarentenas, isolamento, restrição de atividades, sem que a União possa interferir no assunto. A ação em julgamento questionava a Medida Provisória 926/2020, que dispunha sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos, bem como sobre os serviços essenciais que poderiam se manter abertos na fase mais grave da pandemia. A lógica firmada pelo STF é a de que, no âmbito da competência concorrente entre os entes federativos em matéria de saúde, vale a norma jurídica que for mais protetora da saúde dos cidadãos.</p>
<h3><strong>Legislação de emergência em saúde pública</strong></h3>
<p>O Regulamento Sanitário Internacional da Organização Mundial da Saúde (OMS), aprovado em 2005, prevê que o Brasil deve desenvolver suas capacidades legislativas e administrativas de resposta às emergências de saúde pública de importância nacional e internacional. O país pouco fez para criar uma legislação nacional sólida de combate às pandemias, e somente aprovou a Lei 13.979/2020 (conhecida como Lei da Quarentena) no dia 6 de fevereiro de 2020, poucos dias depois de a OMS declarar a Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, em 30 de janeiro. Esta lei foi uma excelente base para a resposta brasileira contra a pandemia, mas teve péssima técnica legislativa ao definir sua vigência, vinculando-a ao período de vigência do Decreto Legislativo n° 6/2020. Ou seja, embora tenha sido um importante avanço, a vigência desta lei é por tempo determinado e não resolve de forma sustentada a questão das capacidades nacionais para resposta às futuras pandemias.</p>
<h3><strong>Vacinação obrigatória</strong></h3>
<p>O plenário do STF decidiu em dezembro de 2020 que o Estado pode obrigar os cidadãos a se submeterem à vacinação contra a Covid-19, conforme previsto na Lei 13.979/2020. O entendimento foi firmado no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, que tratavam de vacinação contra a Covid-19, e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1267879, em que se discute o direito à recusa à imunização por convicções filosóficas ou religiosas.</p>
<p>De acordo com a decisão do STF, o Estado pode impor aos cidadãos que recusem a vacinação medidas restritivas previstas em lei (multa, impedimento de frequentar determinados lugares, fazer matrícula em escola), mas não pode usar força para imunizar as pessoas (vacinação obrigatória não é vacinação compulsória). Também ficou definido que os estados, o Distrito Federal e os municípios têm autonomia para realizar campanhas locais de vacinação. Com essa decisão, firma-se a amplitude do poder de polícia estatal em matéria de vacinação obrigatória, medida importantíssima para conter epidemias e evitar a disseminação de doenças transmissíveis.<strong> </strong></p>
<h3><strong>Fortalecimento do SUS</strong></h3>
<p>A Covid-19 mostrou aos brasileiros a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) para a garantia do direito à saúde no Brasil e para a proteção da população brasileira contra epidemias. Ao longo da pandemia muitas leis foram aprovadas para reforçar o sistema, notadamente para destinar mais recursos financeiros ao SUS, criar novos leitos de UTI e tornar a gestão administrativa do sistema mais ágil e eficiente. Alguns destes avanços foram perdidos na medida em que grande parte destas normas perderam sua vigência juntamente com o fim da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/espin">Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional</a> (Portaria GM/MS 913, de 22 de abril de 2022).</p>
<p>Como se vê, a proteção do direito à saúde no Brasil evoluiu de forma consistente ao longo dos anos desde a Constituição Federal de 1988, e um dos principais impactos da pandemia foi o de acelerar essa evolução nos últimos dois anos. No entanto, muitos ainda são os desafios da sociedade brasileira para que este direito seja uma realidade entre nós. Nas próximas colunas serão abordados os principais desafios que se apresentam para a proteção do direito à saúde e os possíveis caminhos para a superação destes desafios.</p>


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JOTA

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