Opinião e Análise

Fernando Aith

Quando a pandemia da Covid-19 estava se aproximando do Brasil, a expectativa era a de que o país iria conseguir enfrentar o coronavírus de forma organizada e eficiente, já que possuímos o maior sistema público universal de saúde do mundo: o Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">SUS</a>). Criado para organizar os serviços públicos de saúde no Brasil, prestados pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, o SUS possui capilaridade por todo o território nacional e pode ser encontrado perto da residência da maior parte dos brasileiros, seja o serviço prestado no âmbito de um posto de saúde, de um hospital, de uma clínica médica ou de uma equipe de saúde da família. Tínhamos, portanto, todas as condições de sermos um dos países que melhor iria superar a crise sanitária que se avizinhava no início do ano de 2020. Mas a realidade mostrou-se totalmente diferente.
Estudo desenvolvido pelo Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP) ao longo dos anos de 2020 e 2021 coletou as normas federais e estaduais relativas à Covid-19, com o intuito de estudá-las e avaliar seu impacto sobre os direitos humanos, buscando contribuir para a prevenção ou a minimização dos efeitos negativos da pandemia no Brasil. O balanço dos efeitos da pandemia sobre os direitos humanos no país é devastador.
No âmbito federal, mais do que a ausência de um enfoque de direitos, revelou-se a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República. A partir de abril de 2020, o governo federal passou a promover a imunidade coletiva (também dita “de rebanho”) por contágio como meio de resposta à pandemia, com consequências nefastas para a população. Ao longo dos anos da pandemia no Brasil, foi possível identificar três eixos de atuação do governo federal em resposta à pandemia que caracterizaram a espinha dorsal dessa estratégia equivocada e catastrófica para o enfrentamento da pandemia:
(i) Os atos normativos da União, incluindo a edição de normas por autoridades e órgãos federais, bem como vetos presidenciais. Neste eixo, chamam a atenção os decretos que definem como “atividades essenciais”, durante uma pandemia, ao revés das evidências científicas, certas práticas consideradas altamente disseminadoras da doença por gerarem aglomerações de difícil controle ou pela própria natureza da atividade, como cultos religiosos, academias de ginástica e salões de beleza. Também se destacam os vetos às principais leis que visaram conter a disseminação do vírus, como as relativas à obrigatoriedade do uso de máscaras e à proteção dos indígenas.
(ii) Os atos de obstrução das respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia, que o próprio presidente já definiu como “guerra aos governadores”. Tais atos de gestão e omissões propositais incluem o atraso sistemático no repasse de recursos, a tentativa de confisco de insumos de saúde adquiridos por estados e municípios, e o atraso proposital no encaminhamento da vacinação, com o cancelamento da compra de vacinas produzidas pelo Instituto Butantan e a recusa de oferta de vacinas pela indústria farmacêutica Pfizer.
(iii) A propaganda contra a saúde pública, definida como o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular a recomendações de saúde baseadas em evidências científicas e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da Covid-19. Esse ardiloso plano de comunicação, que conta com entusiasmado apoio de milhares de militantes governistas, trouxe consequências gravíssimas para a saúde pública também a médio e longo prazos, o que pode ser exemplificado pela erosão da cultura de imunização da qual o Brasil se orgulhava, construída a duras penas ao longo de décadas de investimento público.
Outro efeito pernicioso dessa propaganda foi a naturalização do charlatanismo, que costuma emergir em crises sanitárias desta amplitude, mas, no Brasil, encontrou guarida no aparelho de Estado. O chamado “tratamento precoce” para a Covid-19 transformou-se em um movimento político governista de grande amplitude, com a conivência do Conselho Federal de Medicina (CFM), apesar da resistência de numerosas sociedades médicas que não cederam a pressões ideológicas e ameaças.
Embora aumentem de forma consistente os casos de sequelas e óbitos decorrentes de efeitos adversos do uso de tais medicamentos, o Brasil, com o protagonismo do presidente da República, é o único país que ainda persiste nessa infâmia que sempre foi, desde o começo da pandemia no país, um dos elementos essenciais na estratégia do governo federal de promover o encorajamento individual à exposição ao vírus.
Como resultado desta política que teve consequências mortíferas no Brasil, neste final do mês de setembro de 2022 já são mais de 686 mil brasileiros mortos em decorrência da Covid-19, e mais de 34 milhões de brasileiros infectados com o coronavírus. Na comparação com os demais países do mundo, se pegarmos o número de mortos por Covid-19 por milhão de habitantes, o Brasil aparece como 19º pior país do mundo em termos de mortes. Para se ter uma ideia de comparação, morreram no Brasil 3.185 pessoas por milhão de habitantes (3.185/milhão); no Canadá, 1.172/milhão; na França, 2.364/milhão; na Nova Zelândia, 604/milhão. O “campeão” deste campeonato macabro é o Peru, com 6.428/milhão, seguido de países do Leste Europeu como Bulgária, Bósnia e Hungria (este, não por acaso, um país “modelo” para o atual presidente do Brasil).
Nesta semana estreou o documentário “Eles poderiam estar vivos”, produzido pelos irmãos Lucas e Gabriel Mesquita, que reúne um conjunto relevante de informações sobre o combate brasileiro à pandemia, costurando de forma clara e emocionante a evolução da política do governo federal com as mortes e os sofrimentos sofridos por tantas e tantas famílias do Brasil. E mostrando, de forma inequívoca, que muitas dessas mortes eram evitáveis se o país tivesse simplesmente feito o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) e as evidências científicas recomendavam: uso de máscaras; distanciamento social; etiqueta respiratória; redução de circulação de pessoas e das atividades econômicas, para fins de contenção da disseminação do vírus; realização de testes em massa.
O documentário mostra com clareza que, ao mesmo tempo em que essas recomendações e evidências surgiam no debate internacional e da OMS, o Brasil assistia ao presidente da República e seus principais assessores: promover aglomerações; recusar-se sistematicamente a usar máscaras; atacar dia sim outro também os governadores e prefeitos que tentavam fazer a coisa certa; fazer propaganda de medicamentos ineficazes (cloroquina); demitir ministros da Saúde que queriam atuar tecnicamente; recusar a compra de vacinas; comemorar a morte de voluntário durante as pesquisas clínicas da Coronavac pelo Instituto Butantã (ainda que a morte tenha sido causada por suicídio e nada tivesse a ver com a vacina em teste); deixar vencer nos armazéns testes para Covid-19... a lista de equívocos é enorme.
O documentário dos irmãos Mesquita resgata a história de tantas vidas perdidas em vão, e nos lembra, para sempre, que se não fosse a política consciente e deliberada do governo federal de minimizar a pandemia e promover a imunidade coletiva, “eles poderiam estar vivos”. São centenas de milhares de seres humanos que poderiam estar vivos. Mas não estão.
Os responsáveis por tantas mortes evitáveis, por tanto sofrimento desnecessário, por tantas sequelas físicas e mentais em nosso povo, devem ser exemplarmente punidos. Para isso, é fundamental que retomemos o Estado democrático de Direito brasileiro, e que as instituições de fato funcionem de forma republicana e implacável para responsabilizar cada um dos que contribuíram para a tragédia desnecessária e desproporcional que acometeu o país ao longo da pandemia.

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JOTA

Documentário evidencia como política catastrófica do governo federal causou centenas de milhares de mortes evitáveis na pandemia

Eles poderiam estar vivos

Documentário 'Eles poderiam estar vivos' evidencia como política catastrófica do governo federal causou centenas de milhares de mortes evitáveis na pandemia