Opinião e Análise

Fernando Aith

A consolidação da democracia como regime de governo hegemônico e o reconhecimento do direito à saúde na legislação internacional e nas constituições de vários países impactaram os sistemas jurídicos nacionais, que passaram a organizar o modelo de democracia a ser implementado em cada sociedade e também se viram na necessidade de definir os contornos e significados jurídicos da expressão direito à saúde.
Embora hegemônico, os regimes democráticos podem assumir múltiplas concepções. Diferentes sociedades, em diferentes contextos, produzem diferentes normas jurídicas voltadas à (i) estruturação democrática dos respectivos Estados, (ii) definição de direitos e (iii) criação formal de processos juridicamente regulados a serem observados pelas autoridades estatais.
O Estado democrático de Direito pressupõe a constitucionalização dos princípios da soberania popular e da legalidade, pelos quais todo poder emana do povo e por ele será exercido, diretamente ou pela via da representação, e o exercício do poder será limitado pelas leis e a sua aplicação pelo Estado.
A ideia de que a legitimação do direito nas democracias modernas deve se dar pelo procedimento democrático surge de forma recorrente desde o advento do Estado moderno, embora de diferentes maneiras, como por exemplo: no positivismo de Kelsen, Hart e Weber; no contratualismo de Rousseau; no procedimentalismo de Habermas; e na teoria dos sistemas sociais de Luhmann.
A partir de meados do século 20 a emergência da saúde como direito evidenciou a necessidade de participação democrática para o seu reconhecimento e aplicação nos Estados modernos. Assim, o reconhecimento da saúde como um direito humano fundamental e o estabelecimento de garantias jurídicas para a sua plena realização devem também ser legitimados pela democracia, por meio de instituições e processos democráticos juridicamente regulados, capazes de garantir aos cidadãos a participação tanto nas definições do conceito de saúde quanto nas consequências que estas definições terão sobre a abrangência conceitual do direito à saúde, com impactos diretos na aplicação deste direito pelo Estado. 
A comprovação empírica da positivação do direito à saúde no direito internacional e nos direitos internos dos países mostra claramente que a saúde é considerada um valor universal e que este valor é protegido nos países de forma diferente. É indicativo que em praticamente todos os países democráticos exista algum tipo de proteção constitucional ou legal do direito à saúde. Igualmente indicativo é o fato de que, embora o direito à saúde seja reconhecido em maior ou menor grau, sua positivação interna é realizada de diferentes maneiras pelos países, assim como são diversos os contextos sociais, econômicos, políticos, morais e culturais que influenciam a formação do direito positivo e a sua aplicação concreta pelos Estados.
A democracia sanitária é a aplicação do regime democrático aos temas relacionados à saúde individual e coletiva. Por meio da democracia sanitária os cidadãos e grupos sociais organizados participam e influem ativamente, de forma deliberativa ou consultiva, nos processos de tomada de decisões estatais de saúde de competência dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Nesse sentido, a democracia sanitária representa o alicerce de legitimação do direito à saúde e possibilita uma tradução mais fiel, pelo direito, das reais necessidades de saúde de uma população.
As decisões estatais em saúde, tomadas no âmbito do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário, são responsáveis pela conformação real da abrangência do direito à saúde e de suas garantias em uma sociedade. Na tradução jurídica da saúde como um direito, a soberania popular deve ser exercida em sua plenitude, para que a expressão direito à saúde seja compreendida e aplicada como um direito democrático.
No Brasil, a partir do reconhecimento da saúde como um direito de todos e um dever do Estado, foram criadas diversas garantias jurídicas visando a efetiva participação da sociedade nos processos de decisão estatal na área da saúde. As garantias jurídicas da democracia sanitária podem ser classificadas em: (i) garantias constitucionais da democracia sanitária; (ii) instituições jurídicas garantidoras da democracia sanitária e; (iii) processos jurídicos garantidores da democracia sanitária.
As garantias constitucionais da democracia sanitária despontam como essenciais para que o direito à saúde seja de fato democrático. São exemplos destas garantias a separação de Poderes, o princípio da legalidade, a soberania popular, as liberdades fundamentais (religião, reunião, associação, expressão etc.), a publicidade e transparência dos atos estatais, os plebiscitos, referendos e projetos de lei de iniciativa popular e, ainda, a diretriz constitucional de participação da comunidade no SUS.
As instituições jurídicas criadas pelo direito para possibilitar o exercício da soberania popular no campo da saúde também são importantes garantias democráticas. As instituições jurídicas garantidoras da democracia sanitária vão além das instituições jurídicas clássicas que representam formal e institucionalmente os poderes estatais. Certamente que Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, assembleias legislativas, câmaras municipais, estados e municípios, STF, tribunais estaduais ‒ enfim, o conjunto de instituições jurídicas que compõem os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ‒ fazem parte do desenho das garantias jurídicas da democracia sanitária e são fundamentais para que esta exista. No entanto, no campo da saúde, evidencia-se o surgimento de novas institucionalidades jurídicas de participação, como os conselhos nacional, estaduais e municipais de saúde, as conferências de saúde e as ouvidorias.
Já os processos participativos juridicamente regulados contribuem para a tomada de decisões legislativas, executivas e judiciárias e compõem a arquitetura das garantias jurídicas da democracia sanitária no Brasil. Trata-se de um caminho que pode conduzir a vontade popular até a decisão estatal. Destaque-se aqui as audiências públicas, as consultas públicas, os processos administrativos, os processos judiciais (judicialização da saúde), dentre outros.
A previsão constitucional dos direitos fundamentais, dentre os quais o direito à saúde, aliada a instituições e processos jurídicos de participação democrática, oferece um suporte fundamental para que o cidadão interessado possa, efetivamente, participar e contribuir na formação da decisão estatal. Também se destacam como benefícios gerados pelas garantias jurídicas da democracia sanitária: (i) a organização do Estado para a prática de processos decisórios participativos; (ii) a imposição de obrigações claras ao Estado para que sejam adotados processos decisórios participativos; (iii) a ampliação dos espaços e processos de argumentação democrática dos temas de interesse público e; (iv) o reforço da legitimação democrática do direito.
A efetiva participação dos cidadãos e dos grupos sociais organizados nos processos decisórios do Estado relativos à configuração e à aplicação do direito à saúde é essencial para que as decisões estatais reflitam a vontade soberana do povo sobre os aspectos da saúde individual e coletiva que dizem respeito a todos e a cada um de nós, respeitando-se os direitos fundamentais e a proteção às minorias.

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JOTA

Conceito deve ser construído e legitimado pela sociedade nos processos de formulação de leis e políticas públicas

Direito à saúde e democracia sanitária

Conceito do direito à saúde deve ser construído e legitimado pela sociedade nos processos de formulação de leis e políticas públicas