Opinião e Análise

Fernando Aith

A pandemia teve impactos enormes sobre a efetivação do direito à saúde no Brasil e, aos desafios que já existiam antes mesmo da pandemia, outros novos se somaram com igual complexidade e urgência. Dentre os desafios atualmente mais prementes, o financiamento do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">SUS</a>) se revela um dos mais importantes.
O reconhecimento do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/direito-a-saude">direito à saúde</a> no Brasil pela Constituição Federal de 1988 veio acompanhado pela criação do SUS, um sistema organizado para ser universal, de acesso igualitário e integral. Tal projeto humanista e solidário exige um financiamento permanente, constante e suficientemente equilibrado para que possa cumprir com o seu importante objetivo de promoção, proteção e recuperação da saúde. Por essa razão, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao-federal">Constituição Federal</a> tratou com bastante detalhamento o financiamento das ações e serviços públicos de saúde no país.
O financiamento da saúde está inserido no âmbito do financiamento da seguridade social brasileira (sistema de proteção social criado pela Constituição que reúne saúde, assistência social e previdência). A seguridade social, inserida na solidariedade coletiva em nosso pacto social, deve ser financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
No que diz respeito à área da saúde especificamente, o art. 198, emendado pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm">Emenda Constitucional 29/2000</a>, vinculou recursos orçamentários da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios ao financiamento da saúde. A partir de uma iniciativa da frente parlamentar pelo direito à saúde, a Constituição de 1988 foi emendada para prever um instrumento de financiamento semelhante ao da educação também para a saúde. Foi assim que a EC 29/2000 foi promulgada para determinar que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios devem aplicar, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre os produtos de suas arrecadações.
A vinculação orçamentária determinada pela Constituição para a União prevê a aplicação do mínimo de 15% da receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro (redação dada pela EC 86/2015). Já para estados e DF, a Lei Complementar 141/2012 estabelece que deverão aplicar, anualmente, no mínimo 12% da arrecadação dos seus impostos, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos municípios.
No caso dos municípios e, no que for apropriado, do Distrito Federal, a LC 141/2012 determina a aplicação anual do mínimo de 15% da arrecadação dos seus impostos.
Estes dispositivos constitucionais foram fundamentais para assegurar, ainda que em patamar insuficiente, um financiamento perene para a saúde pública no Brasil, possibilitando importantes avanços para o SUS e para a efetivação do direito à saúde no país.
No entanto, sob o governo Michel Temer, o Congresso Nacional promulgou a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm">EC 95/2016</a>, que instituiu o Novo Regime Fiscal. A EC 95/2016 estabeleceu, para cada exercício e para todos os Poderes da República, limites individualizados para as despesas primárias.
A saúde foi especialmente afetada por essa emenda na medida em que alterou as regras de aplicação mínima orçamentária para ações e serviços de saúde. Conforme Nota Técnica elaborada por Fabíola Vieira e Rodrigo Benevides, pesquisadores do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), são grandes os impactos do congelamento do piso do gasto federal com saúde para o financiamento do sistema:
<ul>
<li>a) desvinculação das despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) da receita corrente líquida;</li>
<li>b) perda de recursos em relação às regras de vinculação das Emendas Constitucionais 29 e 86;</li>
<li>c) redução do gasto público per capita com saúde;</li>
<li>d) desobrigação dos governos de alocarem mais recursos em saúde em contextos de crescimento econômico;</li>
<li>e) provável aumento das iniquidades no acesso a bens e serviços de saúde;</li>
<li>f) dificuldades para a efetivação do direito à saúde no Brasil.</li>
</ul>
O Brasil, embora tenha um sistema universal de saúde, responsável pela garantia do direito à saúde para 210 milhões de pessoas, é um dos países que menos investe recursos públicos em seu sistema, mesmo se comparado com países que possuem sistemas securitários (como a Alemanha) ou liberais (EUA). Para se ter dimensão do tamanho do subfinanciamento da saúde no Brasil, o gasto público brasileiro em saúde em 2019 foi de 3,9% do PIB. É um valor muito baixo se comparado aos países da OCDE e também a países da América: Canadá (7,6%), França (8,3%), Itália (6,4%), Reino Unido (8,1%) e Chile (4,1%).
É certo que o Brasil precisa melhorar a gestão dos serviços públicos de saúde e sua eficiência. No entanto, o subfinanciamento público deste setor é uma evidência que não pode ser ignorada. Um problema não elimina o outro, apenas o agrava.
Mesmo com tantas evidências a nos mostrar a necessidade de se investir mais recursos públicos em saúde, o Brasil, na contramão do que deve ser feito, especialmente no âmbito federal, vem reduzindo ou mantendo estagnado o financiamento público, descontados os aportes feitos em decorrência da pandemia nos anos de 2020 e 2021, quando se verificou um aumento do montante público destinado à saúde para financiar os gastos extraordinários surgidos com a pandemia (chamado por alguns de “orçamento de guerra”).
Mesmo esse aumento artificial não pode ser inteiramente comemorado. Não só porque foi provisório e passageiro, mas principalmente porque, vale lembrar, uma importante fatia do orçamento público da União destinada à saúde vem sendo destinada por meio das chamadas “emendas de relator”, responsáveis pela destinação de importantes montantes do financiamento da saúde (R$ 3,4 bilhões em 2020; R$ 7,6 bilhões em 2021 e R$ 8,1 bilhões em 2022).
Estas emendas não dialogam com as necessidades de saúde fixadas nos Planos de Saúde da União, dos estados, do DF e dos municípios, e representam gastos desconectados das necessidades de saúde diagnosticadas por números e dados científicos. São bilhões de reais do já insuficiente recurso público em saúde que têm sua destinação baseada, principalmente, em interesses paroquiais e eleitoreiros dos parlamentares.
É preciso, com urgência, encontrar um modelo de financiamento da saúde pública no Brasil capaz de sustentar de forma adequada e solidária o SUS. Financiar saúde e educação é investir em bem-estar, redução de desigualdades sociais e segurança. Trata-se de prioridade máxima da nação que não pode mais ser negligenciada. O pacto social da Constituição de 1988, solidário e inclusivo, deve ser retomado em sua plenitude, respeitando-se o direito à saúde de forma séria e consequente.
Sob a coordenação de Francisco Fúncia, a Associação Brasileira de Economia da Saúde está divulgando uma proposta para uma “Nova Política de Financiamento do SUS (saúde é investimento)”. Documento bem elaborado sobre a realidade do financiamento da saúde pública no Brasil, representa oxigênio para o debate público nacional e merece ser debatido seriamente.
O desafio do financiamento da saúde pública no Brasil representa, sem sombra de dúvidas, um dos principais entraves para que o país rume, finalmente, ao tão almejado mundo civilizado.

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JOTA

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