Fernando Aith
Professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP
Meu primeiro contato com o professor Dalmo de Abreu Dallari foi na Faculdade de Direito da USP, como aluno de graduação. Lembro-me como se fosse ontem o impacto que aquele homem calmo e extremamente claro me causou ao falar sobre os “elementos de teoria geral do Estado” em suas aulas, palestras e textos. Tive ainda o privilégio de ter sido seu aluno durante meu mestrado na USP, onde pude ouvi-lo discorrer sobre os direitos humanos, os desafios que o Brasil – um dos países mais desiguais do mundo – teria pela frente para fazer valer toda a teoria moderna que fundamenta os Estados democráticos de Direito.
Alguns anos depois, por intermédio de sua filha, Maria Paula Dallari Bucci (hoje professora da Faculdade de Direito da USP), e de sua esposa, Sueli Gandolfi Dallari (minha orientadora de doutorado que se tornou uma grande amiga e colega de docência na Faculdade de Saúde Pública da USP), pude conviver com Dalmo Dallari não só em ocasiões de ensino ou pesquisa (que foram várias ao longo dos anos), mas também no dia a dia, em almoços, cafés, jantares e encontros informais em sua casa. Além de sempre ter sido um prazer desfrutar a companhia desse ser iluminado, qualquer conversa com Dalmo Dallari me trazia uma sensação boa, de fé na humanidade, de que o mundo pode se tornar um lugar melhor para nós e para as futuras gerações.
Dotado de uma cultura oceânica, conhecedor dos clássicos e dos modernos, Dalmo Dallari tinha uma forma de se expressar simples, direta, sem rodeios, palavrórios estéreis ou meias-palavras. Fazia-se entender perfeitamente, mesmo quando explicava temas complexos, e o sentido de suas palavras sempre me trazia conhecimento, alento e esperança. Não importava quem era o seu interlocutor, Dalmo sempre o ouvia com seriedade e dialogava diretamente com ele, com serena simplicidade, sem fugir das controvérsias e sempre deixando muito claro o seu ponto de vista.
Em homenagem a esse cidadão brasileiro e como uma singela despedida, tomo a liberdade de transcrever, na coluna de hoje, um texto publicado por Dalmo Dallari em 2003, intitulado “Ética sanitária” (Ministério da Saúde, Brasília, 2003. Direito Sanitário e Saúde Pública). A atualidade deste texto em pleno 2022 é prova de sua genialidade.
*
Ética sanitária
O início do século 21 deverá ter, na história da humanidade, o mesmo significado renovador que se verificou na passagem do século 18 para o século 19. Não é necessário um exame aprofundado para se perceber que as concepções sobre a pessoa humana e os padrões de convivência, herdados do final do século 18 e mantidos, em suas linhas gerais e apesar de inúmeras conturbações, até à primeira metade do século 20, já não se sustentam. Ainda não estão claros – e talvez faltem ainda algumas definições importantes – quais serão os novos padrões, em que medida a pessoa humana terá preponderância sobre outros valores, se a eliminação de antigos privilégios e antigas discriminações dará lugar a novas formas de diferenciação entre pessoas e grupos sociais ou se expressões como liberdade e igualdade terão o mesmo sentido para todos os seres humanos.
Como acontece em todas as épocas de transição, há muitos conflitos e contradições, colocando-se a necessidade de discernir entre o que é real e permanente, ou pelo menos duradouro, e o que é transitório ou apenas a expressão de um progresso ilusório ou superestimado. Assim é que se tem agora a sensação de extraordinários avanços científicos e tecnológicos – o homem chegou à Lua, os meios de transporte e comunicação atingiram velocidades nunca antes imaginadas, a capacidade dos instrumentos de morte e destruição em massa, como os armamentos atômicos, atingiu um ponto em que já se pensa na hipótese de um conflito armado que termine com a destruição do planeta Terra. A par disso, inovações espetaculares abalam verdades científicas e parecem abrir possibilidades ilimitadas para o avanço das ciências, como acontece no âmbito da genética.
Ao mesmo tempo e nesse mesmo quadro de transformações e aparente progresso, verifica-se que cada um desses avanços traz consigo um caudal de agressões e ameaças a milhões de seres humanos, o que provoca uma série de questionamentos. Se essas novas possibilidades de influir sobre a natureza são realmente progressos, será razoável estabelecer limites para novas experiências científicas – que podem, inclusive, acarretar vantagens econômicas – em nome da proteção da pessoa humana ou do meio ambiente? E quanto à destinação de recursos para pesquisas e experiências, bem como relativamente aos programas de governo, será razoável aceitar que o desenvolvimento científico e tecnológico não tenha prioridade ou sofra limitações, a fim de que haja dinheiro para o atendimento de demandas sociais que não acarretam o aumento da riqueza ou a criação de conhecimentos?
No campo das relações políticas e econômicas também surgem inovações e questionamentos. A partir da autodissolução da União Soviética, que desapareceu por causa de suas contradições e injustiças internas e não por ter sido derrotada num confronto com outra grande potência – o que deve servir de advertência aos mais poderosos –, as elites políticas, econômicas e sociais sentiram-se livres de ameaças e encorajadas para acentuar seus privilégios tradicionais. Foi assim que surgiu a ideia de globalização, implicando a existência de um mundo sem fronteiras, a supremacia das leis do mercado nas relações sociais, a redução dos direitos dos trabalhadores e, para diminuição dos encargos sociais e aumento da área de exploração econômica, a privatização de todas as atividades que pudessem ser economicamente rentáveis. Tudo isso acompanhado de uma explosão de nacionalismos, oposto à globalização pretendida pelos senhores da economia, e da manutenção de práticas protecionistas mantidas e acentuadas pelos países mais desenvolvidos, negando na fonte o pretexto do livre mercado, que pretendem impor aos menos desenvolvidos.
Coroando esse quadro de mudanças e contradições verifica-se o crescimento evidente das discriminações, sobretudo a partir de dados econômicos, aumentando a concentração da riqueza nas mãos de minorias e a expansão da pobreza, atingindo a miséria e implicando várias espécies de discriminação e marginalização, impedindo a sobrevivência em condições dignas de milhões de seres humanos. Completando esse quadro, verifica-se que, pela imposição das prioridades de minorias econômica ou politicamente fortes ou pela falta de escrúpulos de indivíduos que ocupam posições privilegiadas, a corrupção campeia nos âmbitos público e privado. São fatos públicos e frequentes a gestão desonesta de recursos, a ausência de políticas sociais, mesmo onde isso deveria ser prioridade, a deterioração da qualidade dos serviços públicos, bem como a utilização de conhecimentos científicos e de tecnologia avançada com absoluto desprezo pela pessoa humana, que é degradada à condição de “coisa”, objeto de comércio ou de experimentação.
Como reação, ou tentativa de reação, a essas ações anti-humanas, ganha força a necessidade de consideração da ética, não apenas por motivos de consciência mas também por se verificar que a deterioração dos padrões de convivência humana acarreta problemas extremamente graves, que atingem a todos. Por todos esses motivos a ética passou a ser, e precisa ser, efetivamente, um tema constante nas discussões sobre os critérios para o uso, público ou privado, dos recursos materiais e intelectuais, sobre a presença do Estado e o estabelecimento de políticas públicas, bem como sobre os poderes, deveres e responsabilidades dos que mantêm algum poder de decisão sobre assuntos e problemas de interesse comum, questões que têm influência imediata ou têm reflexo, às vezes muito grave, na consideração da problemática da saúde individual ou coletiva.
*
Professor Dalmo Dallari, sua ausência fará falta, mas suas lições ficarão e serão perpetuadas por todos os que puderam compreender o belo sentido de seus ensinamentos e que ainda estão por aqui.