Opinião e Análise

Fernando Aith

A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cpi-da-pandemia">CPI da Pandemia</a> foi um dos acontecimentos democráticos mais importantes do Brasil nos últimos anos, especialmente no duro período de disseminação de uma doença que já ceifou mais de 670 mil vidas no país. A CPI foi criada no Senado Federal, após decisão do Supremo Tribunal Federal que obrigou o presidente do Senado a instalá-la, em respeito ao direito das minorias.
Ou seja, de início a CPI já nos revelava o perigoso conluio firmado entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo para diversas ações contrárias ao interesse público e às leis – que pode ser ilustrado pelos mais de 130 pedidos de impeachment que esperam uma decisão do presidente da Câmara dos Deputados ou pela Emenda Constitucional que libera gastos públicos para assistência social populista faltando poucos meses para as <a href="https://www.jota.info/eleicoes">eleições</a>.
E foi assim que a CPI iniciou seus trabalhos para apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil; investigar o papel do governo federal para o agravamento da crise sanitária no Amazonas, com a ausência de oxigênio para os pacientes internados; e investigar as possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos, se valendo para isso de recursos originados da União, bem como outras ações ou omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e municipais, no trato com a coisa pública, durante a vigência da calamidade originada pela pandemia do coronavírus SARS-CoV-2.
Em seu relatório final, a CPI da Pandemia recomendou o indiciamento de 66 pessoas físicas e duas pessoas jurídicas, reunindo provas e indícios suficientes do cometimento de diversos crimes. A CPI reuniu provas robustas de que o negacionismo do governo federal em relação ao vírus e às vacinas aumentou o número de mortos no Brasil. E não foi apenas isso.
Descobriu também provas contundentes de corrupção nas negociações para a compra de vacinas pelo Ministério da Saúde; revelou a prática de pesquisas clínicas irregulares e sem consentimento dos pacientes, relacionadas ao uso de medicamentos sem evidências científicas de benefício aos pacientes; bem como demonstrou que há grandes possibilidades de ter havido inúmeras mortes de pacientes de Covid-19 que teriam sido provocadas pelo uso de tratamentos sem respaldo científico, incentivados pelas altas autoridades públicas nacionais.
Os crimes que teriam sido cometidos pelo presidente da República e diversas outras autoridades públicas brasileiras estão previstos em uma série de diplomas legais. Do Código Penal foram identificados indícios suficientes para apuração de práticas dos crimes de propagação da doença; epidemia com resultado morte; infração de medida sanitária preventiva; incitação ao crime; corrupção na compra de vacinas; falsidade ideológica; prevaricação e corrupção ativa. Também foram identificados crimes contra a humanidade (Tratado de Roma); crimes de responsabilidade (<a href="http://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:lei:1950-04-10;1079">Lei 1.079/1950</a>); improbidade administrativa (<a href="http://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:lei:1992-06-02;8429">Lei 8.429/1992</a>); corrupção (<a href="http://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:lei:2013-08-01;12846">Lei 12.846/2013</a>); e organização criminosa (<a href="http://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:lei:2013-08-02;12850">Lei nº 12.850/2013</a>).
O relatório final foi aprovado em outubro de 2021 e encaminhado a diversos órgãos competentes para dar prosseguimento às investigações, visando dar efetividade à legislação brasileira para que os responsáveis respondam judicialmente nas esferas civil, criminal e administrativa. Por ter indícios suficientes para a caracterização de crimes contra a humanidade, o relatório também foi encaminhado para o Tribunal Penal Internacional.
No que se refere ao presidente da República, a CPI propôs o seu indiciamento pelos crimes de prevaricação; charlatanismo; epidemia com resultado morte; infração a medidas sanitárias preventivas; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crimes de responsabilidade (violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo); e crimes contra a humanidade (nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos).
O órgão constitucional competente para processar o presidente da República por crimes comuns é a Procuradoria-Geral da República (CF, Art. 102, I, b), para quem foi endereçada uma cópia integral do relatório da CPI da Pandemia nos dias seguintes à sua aprovação no Senado, ou seja, há nove meses. Após tantos meses de inércia total frente a suspeitas de crimes tão graves, eis que, às vésperas das eleições gerais de 2022, curiosamente, a <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/pgr-pede-arquivamento-de-7-das-10-investigacoes-contra-bolsonaro-e-aliados-25072022">PGR manifesta-se formalmente perante o STF para solicitar o arquivamento das principais denúncias</a> formuladas contra o presidente da República por sua condução catastrófica da pandemia no país.
Para além da surpresa com tal posicionamento, contrário aos indícios e provas colhidas pela CPI, o que mais causou espanto foi o nível primário dos argumentos utilizados pela vice-procuradora-geral da República que assina a peça requerendo o arquivamento das denúncias. Segundo esta autoridade do MPF, no que diz respeito ao charlatanismo associado ao incentivo do uso da cloroquina para tratamento da Covid-19, não teria havido crime porque o presidente "acreditava sinceramente que o uso desses fármacos auxiliaria no combate à doença". Como se isso bastasse para isentá-lo de culpa ou dolo. Analogamente, é como dizer que um assassino deve ser absolvido quando acreditar sinceramente que tenha motivos de interesse público para matar uma pessoa, mesmo sabendo que não há qualquer evidência nesse sentido.
A vice-procuradora-geral também argumentou que o presidente não atuou "com a intenção de gerar risco" aos cidadãos por recusar o uso de máscaras, já que isso se caracterizaria como "um padrão de conduta que guarda sintonia com seu agir político desde o início da pandemia". Esqueceu-se a digníssima autoridade do MPF que a <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735">Lei Federal 13.979/2020</a> obrigava, à época dos fatos, todos os brasileiros a usar a máscara. Em uma República, o presidente deve obediência às leis e seu “agir politico” não configura excludente de ilicitude. Pelo contrário, deveria dar o exemplo. Seu gesto pode ser caracterizado como um incentivo à desobediência civil em tempos de emergência nacional de saúde pública. Por menos que isso, o primeiro-ministro do Reino Unido foi pressionado até perder seu cargo (promoveu festinhas no período em que o lockdown estava vigente naquele país).
As barbaridades argumentativas são inúmeras. O contorcionismo retórico usado pela PGR para isentar o presidente de suas responsabilidades no que se refere à pandemia é de fazer corar qualquer estudante de primeiro ano de direito, e nos coloca definitivamente no campo das repúblicas de banana.
A CPI nos revela, neste momento, mais um capítulo deste longo período de degradação das instituições republicanas brasileiras, criadas para que o Brasil possa se tornar, finalmente, um Estado democrático de Direito. Pouco a pouco vão sendo erodidas as principais instituições democráticas e republicanas do país: SUS, Capes, Funai, Ibama, ICMBio, Inep, Fundação Palmares, Iphan. É a boiada passando.
Neste grave momento da vida nacional, deve-se saudar com entusiasmo a iniciativa da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo de lançar a “Carta às Brasileiras e Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, que será lida no dia 11 de agosto no pátio do Largo São Francisco, em São Paulo.
O povo brasileiro jamais esquecerá cada um dos mais de 670 mil mortos na pandemia, e a sociedade têm o dever de honrar a memória de tantas vidas perdidas, muitas delas sem qualquer necessidade. O Estado democrático de Direito é o único caminho civilizado para a responsabilização de todas as autoridades que poderiam ter evitado tamanha tragédia, mas atuaram no sentido contrário, contribuindo para o Brasil figurar entre os países com maior número de mortes por 100 mil habitantes no mundo, agindo em total desrespeito à ética, às leis, à dignidade do ser humano e à vida.

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JOTA

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