Fernando Aith
Professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP
O acelerado ritmo das inovações tecnológicas na área da saúde tem colocado os reguladores estatais em uma situação delicada. Em um mundo em que novas tecnologias aplicadas à saúde são criadas e colocadas no mercado em ritmo cada vez mais vertiginoso, falta tempo para que os agentes públicos responsáveis pela regulação possam realizar as necessárias análises de riscos e potenciais e, com base nisso, elaborar uma regulação estatal eficiente, racional, razoável e proporcional.
Nesse contexto, cada vez mais se verifica no mundo o surgimento e uso do experimentalismo regulatório, também conhecido como sandbox regulatório. Esse fenômeno, iniciado com regulações experimentais aplicadas ao setor financeiro, está cada vez mais próximo do setor da saúde.
O Edital de Chamamento 11, de 8 de agosto de 2024, publicado pela Anvisa, inaugura a abertura do setor para o experimentalismo regulatório e o uso do sandbox regulatório para produtos e tecnologias aplicadas à saúde, produtos esses cujas inovações demandam ainda uma compreensão mais acurada sobre os potenciais e riscos aos indivíduos e à sociedade.
O sandbox regulatório pode ser entendido como um espaço legal e juridicamente controlado para que empresas possam operar sob regras mais flexíveis (ou com menos regulamentação), supervisionados por uma autoridade reguladora e por um comitê de monitoramento, por um período de tempo limitado.
A essência dessa abordagem é permitir a experimentação de ideias e produtos inovadores num ambiente controlado, sem todas as exigências regulatórias vigentes para produtos afins ou semelhantes mas que não se adequam integralmente ao novo produto. O sandbox regulatório pode, potencialmente, acelerar a entrada de um produto no mercado e oferecer às autoridades reguladoras informações e conhecimentos mais apropriados para a formulação de uma regulação adequada para esses novos produtos.
O termo sandbox faz alusão a um ambiente seguro e controlado, um espaço limitado de livre experimentação e aprendizado, supervisionado por um responsável (como os parquinhos de areia onde brincam as crianças). A estratégia de sandboxes regulatórios tem sido vista como muito promissora para buscar o equilíbrio entre o estímulo à inovação e a garantia de segurança em muitos setores, com destaque para a regulação da IA (Dourado, 2024).
Em pesquisas, o sandbox é uma ferramenta usualmente aplicada no desenvolvimento tecnológico, um ambiente seguro e controlado para o desenvolvimento e teste de novas soluções. O propósito destes ambientes controlados é permitir a experimentação livre e criativa, com o objetivo de aprender e testar novas ideias, mitigando os riscos e consequências negativas de uma implantação imediata em um ambiente real amplo (Cobra, 2024).
O Regulamento da Inteligência Artificial (AI Act) da União Europeia prevê a criação de ambientes de testagem regulatória para IA (AI regulatory sandboxes) nos seus Estados-membros. A proposta europeia busca, de um lado, promover a aprendizagem empresarial e, de outro lado, apoiar a aprendizagem regulatória, por propiciar a formulação de regimes jurídicos experimentais numa estrutura de riscos controlados.
No Brasil, a Lei Complementar 182, de 1º de junho de 2021, estabeleceu o marco legal para startups e empreendedorismo inovador, e previu a possiblidade de uso dos sandbox regulatórios no país, conceituando o ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório) da seguinte forma: conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado” (LC 182/2021, Art. 2º, II).
Ao abrir chamada pública para obter participação da sociedade e do setor regulado na construção de uma Análise de Impacto Regulatório (AIR) sobre sandboxes regulatórios, a Anvisa busca entender como esse modelo pode ser aplicado à regulação de produtos e serviços inovadores, considerando a complexidade e os desafios específicos da vigilância sanitária.
Embora os sandboxes regulatórios ofereçam um espaço seguro para a experimentação de inovações, ajudando reguladores a reduzir incertezas e riscos associados a novas tecnologias, sua aplicação no setor da saúde ainda é considerada incipiente. A Anvisa está buscando informações para apoiar sua decisão sobre a adoção dessa ferramenta em busca da promoção de acesso seguro a produtos inovadores no campo da saúde, bem como para apoiar o desenvolvimento de novas tecnologias por meio de uma regulação mais flexível que ofereça segurança jurídica aos desenvolvedores.
Para que o experimentalismo regulatório aplicado ao setor da saúde seja bem sucedido, é necessário que sua aplicação no Brasil observe algumas características fundamentais desse modelo de sandbox regulatório, quais sejam: ambiente limitado; regulação procedimentalizada e flexível; criação de um comitê de supervisão e monitoramento e; planejamento da saída da regulação experimental (Cobra, 2024).
São vários os campos da inovação em saúde que potencialmente podem ser beneficiados com o uso da ferramenta do sandbox regulatório, tais como inovações terapêuticas (terapias gênicas, p.e.); inteligência artificial aplicada à saúde; produtos de interação cérebro-computador; portabilidade e interoperabilidade de dados em saúde; dentre outros.
A chamada pública da Anvisa abre as portas para uma novidade regulatória que deve ser acompanhada de perto, já que procura enfrentar as inovações tecnológicas com técnicas regulatórias igualmente inovadoras. O uso do experimentalismo regulatório (sandbox regulatório), parece, pode trazer soluções regulatórias mais eficazes na medida em que oferecem condições para a construção participativa e colaborativa da regulação estatal sobre estes novos produtos e serviços de interesse à saúde, que se utilizam de tecnologias disruptivas ao mesmo tempo promissoras e fontes de riscos desconhecidos.
Dourado, Daniel. Inteligência Artificial e Saúde: Conexões Éticas e Regulatórias. Editora Aboio. 2024.
Cobra, Thiago. Sandbox Regulatório: Regulação Experimental da Saúde. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da USP. 2024.