Fernando Aith
Professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP
A Suprema Corte dos EUA foi flagrada costurando por baixo dos panos uma decisão que poderá alterar radicalmente o tratamento do aborto naquele país. Soubemos disso por meio do vazamento de um documento, ainda em forma de rascunho, elaborado pelo juiz ultraconservador Samuel Alito. No documento (um parecer jurídico de 98 páginas), Alito escreve que a famosa decisão Roe v. Wade, de 1973, que legaliza o aborto nos EUA, é "extremamente errada" e sugere a sua reforma pela atual Suprema Corte americana.
Uma decisão nesse sentido, se confirmada, abre caminho para que os diferentes estados norte-americanos possam legislar autonomamente sobre o tema, fato que, na prática, irá eliminar o direito de muitas mulheres daquele país de interromperem voluntariamente a gestação. Estima-se que, com a mudança de posição da Suprema Corte, leis estaduais já existentes em ao menos 22 estados poderiam instantaneamente tornar o aborto ilegal nestes territórios.
Em termos democráticos, esse movimento da Suprema Corte dos EUA revela uma deterioração dos padrões norte-americanos de democracia. Estratégia iniciada com o aparelhamento da Corte praticado por Donald Trump, visando à maioria conservadora no plenário e politizando o quanto pôde o órgão judiciário máximo do país, o vazamento revela, além de seu conteúdo, outros indícios preocupantes de deterioração democrática, como o segredo com que o tema estava circulando lá dentro e a “indignação” dos juízes afetados com o vazamento do documento.
O vazamento explicita uma tentativa antidemocrática de se tentar mudar uma tradição jurisprudencial de quase 50 anos de forma pouco transparente e sem qualquer debate público. Toda a tradição jurídica norte-americana, pautada pela construção histórica do direito com base nos costumes e nas jurisprudências, parece estar agora sendo simplesmente jogada fora por um casuísmo relacionado à composição atual dos membros da Suprema Corte, aliado ao oportunismo de se pautar o aborto de forma enviesada e no interesse de grupos políticos minoritários, independentemente dos fartos argumentos jurídicos e sociais favoráveis à legalização da interrupção voluntária da gravidez já acumulados em todas estas décadas.
Se analisarmos o tema sob a perspectiva da democracia e da vontade coletiva, pesquisas mostram que 59% da população americana aprovam a prática do aborto, sendo que 37% desaprovam. O apoio ao aborto naquele país sobe para 87% em casos de risco para a mãe e 84% em casos de estupro ou incesto. Para além da legitimidade democrática que a legalização da interrupção voluntária da gravidez possui nos EUA, outros argumentos técnicos e científicos ainda podem ser trazidos à tona para demonstrar, claramente, que a regulação da prática do aborto nas sociedades modernas deve ser feita visando ao bem-estar físico, mental e social da mulher, em respeito aos seus direitos sexuais e reprodutivos.
Se analisado sob a perspectiva da saúde pública, os argumentos favoráveis a um tratamento acolhedor e humanitário do aborto ganham proporções oceânicas. De fato, com os conhecimentos de saúde pública e os avanços científicos obtidos até esse início do século 21, é evidente que, se queremos mesmo proteger vidas – e nos livrar do insolúvel debate de quando começa a vida –, é a vida das mulheres que deve ser priorizada em um primeiro momento. Assim, o aborto deve ser considerado uma questão de saúde pública e parte integrante dos direitos das mulheres, sobretudo os relacionados ao direito à saúde. Porque, ao fim e ao cabo, são essas as vidas das quais temos certeza e evidências que estão sendo perdidas.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 55 milhões de abortos ocorreram no mundo, entre 2010 e 2014, e 45% destes foram inseguros. No Brasil, a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 revela resultados preocupantes, assim sintetizados por Diniz, Medeiros e Madeiro:
“Os resultados indicam que o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões: em 2016, quase 1 em cada 5 mulheres aos 40 anos já realizou pelo menos um aborto. Em 2015, foram aproximadamente 416 mil mulheres. Há, no entanto, heterogeneidade dentro dos grupos sociais, com maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Como já mostrado pela PNA 2010, metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar, e quase a metade das mulheres precisou ficar internada para finalizar o aborto”. (Diniz, Medeiros e Madeiro. Ciênc. saúde colet. 22 (2), Fev 2017)
A criminalização do aborto no Brasil produz mortes evitáveis de mulheres e deve ser revista. Pesquisa coordenada por Maria Lúcia Garcia, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), revela que o país teve uma média de 55,82 mortes maternas a cada 100 mil nascidos vivos entre os anos de 2005 e 2017, sendo o aborto a quarta maior causa dessas mortes, atrás de complicações no parto, transtornos hipertensivos e complicações na placenta.
A prática da interrupção voluntária da gravidez no Brasil é um fenômeno social que não se modifica pela criminalização da conduta. Tal tratamento jurídico apenas piora a já complicada situação dessas mulheres, que decidem interromper a gestação com base em um conjunto de argumentos subjetivos e objetivos que não compete ao Estado interferir ou criminalizar. Ninguém engravida para depois abortar. E, uma vez constatada a gravidez, a decisão do aborto é e será sempre difícil e delicada. Oferecer apoio e suporte psicológico e assistencial para que a decisão de abortar seja executada com segurança pelas mulheres é a única solução cabível em sociedades desenvolvidas e que prezam o direito à vida e à saúde das mulheres.
No que se refere ao aborto, o Brasil adota uma legislação anacrônica (1940) e violadora de direitos fundamentais que não dialoga com direitos fundamentais inscritos na Constituição Federal de 1988. A atual legislação criminaliza a prática do aborto, com poucas exceções legais e jurisprudenciais, e dificulta ainda mais a vida das mulheres. A legislação brasileira é atrasada inclusive em comparação com outros países da América Latina – recentemente México e Argentina fizeram importantes avanços legislativos visando a legalizar a interrupção voluntária da gravidez. Por aqui, embora haja evidências em termos de proteção à saúde da mulher e de respeito aos direitos sexuais e reprodutivos garantidos pela Constituição Federal, a prática do aborto ainda é considerada crime contra a vida pelo Código Penal, punida com penas que vão desde detenção de um ano (autoaborto) até reclusão de dez anos (provocar o aborto sem o consentimento da gestante), com possibilidade de agravamento da pena nos casos de aborto qualificado (morte ou lesão corporal grave da gestante).
Melhor faria o legislador se deixasse de considerar o aborto uma questão penal e passasse a considerá-lo a partir da noção de saúde pública, pois as discussões sobre se o embrião é ou não vida não pertencem ao direito penal, mas sim à filosofia, à ética, à religião e à livre consciência de cada gestante.
Grandes temas da sociedade devem ser enfrentados com evidências científicas, argumentação clara e direta e coragem. O aborto figura entre os temas de maior importância na saúde pública brasileira. No entanto, no debate público nacional, é mais comum ver o tema sendo tratado como política criminal do que como política de direitos humanos ou saúde pública.
Em tempos de eleições, é sempre bom lembrar dos grandes temas nacionais que necessitam de soluções urgentes. Ao debate!