A última semana de março esquentou em Brasília com o recrudescimento da mobilização de servidores de algumas categorias. Enredado em uma crise iniciada dentro do próprio governo, por conta da sinalização do presidente Jair Bolsonaro de fazer aumento apenas para categorias policiais, o Executivo segue discutindo alternativas, embora ainda tenha tempo para tomar decisões – o prazo considerado é até o fim de junho.
A única certeza é que qualquer um dos caminhos a ser escolhido pelo Planalto produzirá, em alguma medida, choro e ranger de dentes. Afinal, é improvável que o governo atenda os pedidos de recomposição de toda a inflação dos últimos anos.
O orçamento tem só R$ 1,7 bilhão para promover reajustes. Além da ideia de reestruturar carreiras de policiais e elevar os vencimentos da PF, PRF e dos agentes penitenciários, na mesa de discussões seguem possibilidades como o aumento do tíquete-refeição em R$ 300 a R$ 400, reajuste linear de 5% a partir de julho (que custaria neste ano em torno de R$ 5 bilhões e demandaria abrir espaço hoje inexistente no teto de gastos), regulamentação de bônus da Receita Federal, entre outras possibilidades na mesa de negociações.
Ao anunciar uma greve por tempo indeterminado a partir desta sexta-feira (1) e forçar uma série de adiamentos na divulgação de dados da autoridade monetária, os funcionários do Banco Central reavivaram o barulho do funcionalismo, que havia arrefecido nas últimas semanas. O agito do BC foi amplificado pelos servidores do Tesouro Nacional, que prometeram parar todas suas atividades nos dias 1º e 5 de abril e também afetaram a divulgação de dados pela área fiscal do Ministério da Economia. Além disso, cabe lembrar que a Receita tem intensificado seus movimentos que vêm desde o início do ano e que também já provocam prejuízos ao funcionamento da máquina.
A combinação de dois anos de congelamento nominal de salários, em um ambiente de escalada inflacionária, provocou uma forte perda de poder aquisitivo do funcionalismo público. Esse é o outro lado do ganho fiscal que o governo teve no período, quando a arrecadação em alta e a despesa contida nessa rubrica ajudaram na melhora dos resultados primários. A isso se soma uma política de baixa recomposição dos quadros que estão se aposentando. Como mostrou o JOTA em relatório especial no mês passado, a taxa de reposição em 2021 foi inferior a 40%, o que também provoca maior pressão por trabalho entre aqueles que seguem na ativa.
O Sindifisco, por exemplo, tem destacado esse ponto. O sindicato dos auditores da Receita tem apontado que o órgão tem um déficit em torno de 5.000 servidores. Além disso, dizem, o orçamento do órgão hoje representa apenas 41% do que era em 2018. Os funcionários do fisco querem a regulamentação de um bônus cujo custo anual é da ordem de R$ 200 milhões.
Nesse ambiente, as pressões do funcionalismo só se avolumam. É o fenômeno das mobilizações por “inveja”, bem típicas de Brasília. Um fato ilustra bem: no último dia 29, a presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Ana Arraes, enviou ofício ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que está em viagem internacional, cobrando que as categorias da corte de contas também sejam contempladas com reajustes, caso isso ocorra para outros segmentos.
“Ocorre que, recentemente, foram criadas expectativas por movimentos de reestruturação de determinadas carreiras de servidores públicos federais, com impacto orçamentário, o que leva a crer que os custos do ajuste fiscal podem não estar sendo distribuídos equanimemente entre carreiras equivalentes, como é o caso dos cargos da Segurança Pública (Polícia Federal), da Receita Federal (pagamento expressivo de bônus de eficiência aos auditores) e da Advocacia-Geral da União (honorários de sucumbência)”, disse Ana Arraes no ofício obtido pelo Valor.
“É inevitável reconhecer que, se essa recomposição não contemplar o quadro de pessoal do TCU, é possível que venha a ocorrer uma migração desses recursos humanos para as carreiras contempladas. Portanto, senhor Ministro, na hipótese de haver reajustes para outras carreiras de Estado, entendo justo que os mesmos percentuais a elas aplicados sejam igualmente concedidos às carreiras desta Corte de Contas”, completou a presidente do TCU.
Do ponto de vista fiscal e considerando os custos da pandemia, o congelamento dos servidores (que, lembremos, não tiveram redução nominal de salários como muitos do setor privado) fez todo o sentido. Mas essa atuação de fato já encontra seus limites, fato acelerado pela inflação mais alta do que se esperava. O drama é que o governo foi muito mal em seu planejamento estratégico e na articulação da reforma administrativa com o Congresso. E agora está em uma situação difícil e que pode ficar ainda mais complicada, a se confirmarem o acirramento das mobilizações.
“A falta de planejamento no setor público chegou a um limite bastante preocupante. O congelamento dos salários dos servidores civis, como medida de gestão, levou a uma contenção relevante do gasto público desde 2019. No entanto, não avançaram as discussões sobre uma reforma do Estado, no sentido de dar maior racionalidade a carreiras, processos e mecanismos de remuneração no serviço público. Nesse sentido, há, sim, legitimidade em certas demandas por aumento salarial”, aponta ao JOTA o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto.
Segundo ele, porém, não há espaço fiscal para promover reajustes neste momento sem prejudicar o equilíbrio fiscal. “E, mais importante, não se conseguiu barrar as remunerações extra teto constitucional, que continua a ser aplicado de modo apartado para diferentes componentes dos vencimentos de algumas carreiras, sobretudo no Judiciário, mas também em outros Poderes”, salientou. Ele lembra que a proximidade das eleições reforça a preocupação, porque pode acabar levando a medidas que comprometeriam os orçamentos e as contas públicas.
Para o coordenador do Observatório Fiscal do FGV Ibre e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Manoel Pires, a estratégia do governo nos últimos anos se tornou ainda mais insustentável, à medida que a inflação acelerou e a perda de renda foi muito alta, em torno de 30% nos últimos quatro anos.
Ele critica a ideia de dar reajuste para algumas categorias e para outras não. “A insatisfação é muito grande. Além disso, a iniciativa de reajustes grandes para algumas carreiras e não para outras terá custo de realinhamento posterior muito grande”, apontou. “Outra questão é o teto de gastos e não se sabe como vai ser gestão no curto prazo.”
Pires traz uma ideia interessante para o debate do que fazer à frente: o governo poderia buscar um maior espaçamento salarial nas carreiras, criando novas faixas salariais e ampliando o espaço para reajustes salariais, mas mantendo congelados os vencimentos nas faixas iniciais das carreiras. “Faria mais sentido como gestão de recursos humanos, pelo menos por mais dois anos. Depois de alinhadas as carreiras e garantido o ganho fiscal permanente, faria a discussão de um reajuste geral”, sugeriu.
O presidente do Fórum das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), Rudinei Marques, destaca que o funcionalismo tem ainda três meses para pressionar o governo a recompor perdas salariais. “O governo federal tem até 180 dias do término do mandato atual, ou seja, até 4 de julho, para conceder reajustes salariais ao funcionalismo, de duas maneiras: 1) recomposição inflacionária do ano em curso, limitada à inflação acumulada no momento da concessão (se isso ocorrer ao final de junho, estaríamos falando de uns 5%); 2) reestruturação de tabelas salariais”, explicou. “A intensificação das mobilizações nesta semana mostra que os servidores estão cientes desse calendário”, finalizou.
O tema é difícil. O Brasil segue com elevada restrição fiscal e os servidores, em especial nas categorias em mobilização, ainda estão no topo da renda do país. Mas também é defensável que haja alguma recomposição de perdas. O governo tem o desafio de equilibrar essa equação. Precisa, porém, se organizar melhor politicamente.