“É urgente que o Brasil debata novos institutos tendo em vista a recente mudança na regra do teto de gastos. Regras [fiscais] precisam ser simples de serem aplicadas, flexíveis para amortecerem situações extraordinárias e virem acompanhadas de instrumentos que conduzam a seu cumprimento.” A declaração do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) e próximo presidente da Corte, Bruno Dantas, foi feita na abertura de um seminário sobre regras fiscais feito nesta quarta-feira (23/3) pelo órgão de controle em parceria com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
O sinal de um dos mais ativos ministros da Corte em assuntos econômicos está na direção correta. Apesar das muitas regras existentes no país, a realidade é que elas não só têm sido insuficientes para dar segurança de longo prazo aos investidores sobre a sustentabilidade das contas públicas (a garantia de que os compromissos serão honrados no futuro), como também não têm conseguido entregar um ambiente mais propício ao crescimento econômico em bases elevadas e sustentáveis.
Secretário-especial de Tesouro e Orçamento, Esteves Colnago apontou no evento que, embora o Brasil tenha um bom grau de modernidade em seu arcabouço fiscal, há problemas de segurança institucional. Ele cita como exemplo as dúvidas da área técnica sobre a melhor maneira para lidar com a possibilidade de afastamento de regras fiscais em caso de baixo crescimento econômico, como previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Ele esclareceu que se referia a situações envolvendo estados e municípios, que levaram esse tipo de consulta ao Tesouro. Outra insegurança mencionada pelo técnico é sobre em que situações cabe a aplicação de créditos extraordinários, mecanismo que permite deixar despesas de fora do teto de gastos.
Além de indicar que deve colocar em consulta pública neste ano o comando para uma regra fiscal ligada à dívida pública, prevista na PEC Emergencial, Colnago reconheceu que o Brasil tem espaço para fazer alguma limpeza no arcabouço e evoluir para ter mais clareza sobre a aplicação delas.
Um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e especialista em finanças públicas, José Roberto Afonso defendeu proposta mais ousada, lançada no ano passado por ele e pelo analista do Senado Leonardo Ribeiro: um código fiscal, no qual todo o arcabouço de gestão das contas públicas, inclusive os que hoje estão na Constituição, estaria consolidado em um único dispositivo legal. “Para começar faria uma lipoaspiração no texto constitucional”, salientou Afonso, que é crítico da falta de regulamentação de dispositivos da LRF que afetam a União, como limites de dívida e gastos com pessoal.
A tarefa é hercúlea, mas faz todo sentido, dado que invariavelmente as regras criadas no Brasil foram alvo de algum drible, sendo o mais recente a PEC dos Precatórios. Afonso ressalta a necessidade de a União fazer uma melhor coordenação com estados e municípios. “De que adianta ter teto de gastos quando 80% dos gastos com compras de bens e serviços é feito pelos governos estaduais e municipais?”, questionou.
O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, um crítico do que chamou de “inflação de regras fiscais”, destacou que o teto de gastos, apesar de ter dado contribuições para a melhora da condição fiscal do país em seus primeiros anos, foi “implodido” no fim de 2021. E, mesmo assim, comenta que hoje não há espaço para gastos em áreas como combustíveis. “É preciso resgatar o espírito original do controle de gastos, que é importante, mas não adianta por placa com limite de velocidade se o pé continua na tábua”, afirmou.
Para ele, a melhor proposta que está na mesa hoje é de seus colegas economistas Daniel Couri e Paulo Bijos, publicado no livro “Reconstrução do Brasil nos anos 20”. A ideia, explica, é adotar um plano fiscal de médio prazo, com revisão periódica de gastos. “Isso permitiria ajuste fiscal consistente”, salientou.
Para Paulo Medas, do FMI, regras fiscais bem-feitas precisam contemplar boas cláusulas de escape, ter incentivos para constituição de poupança para permitir medidas anticíclicas em momentos de crise, com plano de médio prazo e transparência. Além disso, destacou, ter regras bem elaboradas não substitui boas políticas para fomentar o desenvolvimento econômico.
Luiz de Mello, da OCDE, foi na mesma direção, mas agregou que uma regra fiscal é considerada boa no grupo de países ricos quando tem flexibilidade e boa aplicabilidade. Além disso, apontou, trazem mecanismos como tratamento diferenciado para investimentos e despesas de capital, especialmente com foco em lidar com desafios como o envelhecimento da população e a mudança climática.
Mello mostrou em sua apresentação que apenas 26% dos países-membros da OCDE têm regras fiscais em seu texto constitucional. O dado impressiona, especialmente quando se lembra que no Brasil não só duas das principais regras fiscais estão no seu principal diploma legal (teto de gastos e regra de ouro), como, só no ano passado, foram promovidas duas mudanças na carta magna envolvendo a gestão fiscal (PEC Emergencial e PEC dos Precatórios).
Mesmo assim, e sem nenhuma surpresa, o país não conseguiu dar um salto em termos de confiança de longo prazo pela sociedade. Ao contrário, o que já era pendurado por um fio tênue tornou-se ainda mais frágil após a lambança feita pelo Congresso na eleitoreira PEC dos Precatórios.
Como já abordamos em coluna anterior, as eleições se aproximam e esse tema é fundamental, especialmente para o principal desafio do Brasil: voltar a crescer com intensidade sem descontrole nas suas contas. Assim, seja qual for o rumo a ser dado para o desenho fiscal, é necessário que o Brasil consiga produzir um arcabouço que realmente consiga perdurar, não só por ser bem-feito teoricamente, mas porque a sociedade e seus dirigentes o abraçaram.
Como corretamente destacou o secretário-geral de controle externo do TCU, Leonardo Albernaz, regras fiscais não substituem boas políticas. Mas regras mal calibradas podem perder eficiência e credibilidade. A história recente do Brasil mostra claramente isso. Mudar essa realidade não será nada fácil, porém, é um desafio que precisa ser enfrentado o quanto antes.