Um dos debates mais relevantes para a economia brasileira hoje é sobre o futuro das regras fiscais, aqueles dispositivos que norteiam a gestão das contas públicas. Embora siga defendendo o teto de gastos, mesmo após sua atabalhoada flexibilização com a PEC dos Precatórios, a atual equipe econômica tem trabalhado também na elaboração de uma âncora fiscal ligada à dívida pública.
A ideia é deixar um projeto pronto para regulamentar o comando que foi colocado na PEC Emergencial, mesmo que o futuro governo não o aproveite. Estão sendo elaboradas diversas alternativas e cenários para essa proposta. Uma das hipóteses é que o desenho seja similar ao que foi feito na renegociação da dívida dos estados, nos anos 1990, na qual se previa uma trajetória de redução do endividamento e o acionamento de medidas (principalmente aumento no resultado primário), em caso de desvio da trajetória definida. Também haveria um prazo para retorno ao caminho traçado na regra.
Um interlocutor explica que a dívida não funcionará como uma meta, mas sim como uma referência, direcionando as ações de curto e médio prazo. A comunicação com o curto prazo pode ser feita pela regra de resultado primário, enquanto para o longo prazo também envolve a execução da agenda de reformas.
Fora do governo, o debate sobre regras fiscais e sobre qual o melhor desenho para ser feito a partir de 2023 tem crescido. Líder nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não diz qual vai ser seu arcabouço fiscal, mas seus economistas mais próximos já mostram ao menos duas vertentes.
Uma delas, na qual está o ex-ministro Nelson Barbosa, defende uma regra de gastos, que permita ao governo investir mais e gastar na área social, mas definindo limites, por exemplo, vinculados ao PIB. Ele criticou em artigo recente no blog do FGV Ibre a regra de resultado primário (receita menos despesa), que, em sua visão, aumenta a incerteza fiscal, torna a política fiscal pró-cíclica (gasta-se mais na bonança e menos na crise) e ainda geraria incentivos para vinculações de receitas. Mas a meta de primário prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é defendida pela ala vinculada ao ex-ministro Guido Mantega, o que daria mais liberdade para o lado do gasto, e equilibrando o fiscal pelo lado da receita – via tributação e também pelo efeito da retomada do crescimento.
Nas outras candidaturas, apenas o time de João Doria, liderado pelo ex-ministro e secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique Meirelles, demonstra real apreço pelo teto de gastos, em sua concepção original. Na de Sergio Moro, não há ainda indicação clara do que será a política fiscal. Na de Ciro Gomes, que conta com Mauro Benevides e Nelson Marconi pensando a economia, o caminho parece ser mais próximo de uma regra de limite de gastos, com regras distintas para despesas correntes (onde estão Previdência e pessoal) e para investimentos.
Para o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, ter uma regra fiscal crível ajuda muito na gestão das contas públicas e é fundamental. Para ele, o mais importante a se considerar nesse tema é que a regra seja simples, tenha válvulas de escape e coerência com os objetivos econômicos.
Salto destaca que é preciso fazer uma “harmonização” das diversas regras fiscais hoje existentes. “Em 2023, não vamos ter como escapar da discussão sobre o teto e como lidar com as necessidades de despesas nas áreas de saúde e de investimento público”, explicou o economista, que destaca a importância de regras como a de resultado primário, que afetam diretamente a trajetória da dívida pública.
O professor de economia da UFABC e ex-presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB), Fábio Terra, defende que haja uma regra de gasto, com um indexador “realista” e que alinhe de alguma forma a trajetória da despesa pública com o crescimento demográfico. “Sou favorável que se tenha algum número mais objetivo, como um crescimento real de 2%. Esse tipo de regra é muito mais pragmática do que de resultado primário, já que o governo não controla a receita”, disse.
Terra também defende que o investimento seja excluído dessa limitação, mas dentro de alguma forma de planejamento de médio e longo prazo para se recuperar o capital público do país. O economista ressalta ainda que é preciso ter cláusulas objetivas de escape para o enfrentamento rápido de crises, ficando-se menos suscetível a travas políticas em momentos de dificuldade. “A pandemia nos ensinou sobre a necessidade disso”, afirmou.
Especialista em contas públicas, o analista do Senado Leonardo Ribeiro é um dos principais defensores da migração para uma regra de dívida. Ele destaca que é hoje o padrão mais comum no mundo e sugere que o país efetivamente regulamente esse dispositivo que já estava previsto desde a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Para Ribeiro, o que a LRF propõe é melhor do que o comando aprovado no ano passado na PEC Emergencial.
Ele comenta que, pelo desenho da LRF, o Executivo propõe e o Senado aprova o limite, com a regra tendo válvulas de escape e mecanismos de retorno gradual à trajetória prevista. Além disso, salienta, o governo em situações como de pandemia pode solicitar alteração do limite para lidar com o problema.
Segundo Ribeiro, o critério de dívida evita os dribles e medidas de contabilidade criativa praticadas nas regras tradicionais, tanto de resultado primário como de limite de despesas. “Há evidências empíricas mostrando que limite da dívida funciona melhor que regra de despesa, mitiga contabilidade criativa, porque no final tudo cai na dívida, que não deixa passar nada”, explicou, destacando que mais importante não é ter número para ser precisamente alcançado, mas sim apontar uma direção e ancorar a trajetória com transparência.
Terra pondera que uma regra de dívida vinculante pode amarrar demais a gestão de um instrumento de política econômica. Mas ele aponta que tratar a dívida como referência “não vinculante” pode ajudar na gestão da política fiscal.
O ex-ministro Nelson Barbosa, por sua vez, afirma que regra de dívida pode gerar muitos problemas, tanto que “quem tem muda toda hora” ou inclui cláusulas do tipo “veja bem”. “Toda regra fiscal deve conter previsão de dívida, como diz a LRF. Daí a ter meta de dívida para disparar gatilho é outra coisa. Dívida federal é variável residual, que absorve choques econômicos, sociais, judiciais (como precatórios). E não há consenso sobre qual é a dívida ótima, talvez nunca se tenha”, disse Barbosa ao JOTA. No governo, fontes consideram que o ideal é caminhar para 60% do PIB no longo prazo – hoje a dívida está em 80,3%.
Como fica claro, o tema das regras fiscais é sujeito a muitas visões divergentes. Seja como for, esse debate é inescapável tanto para a campanha eleitoral como para o início do próximo governo, seja quem for o vencedor em outubro. Mais importante do que a regra em si é que o Brasil consiga amadurecer um desenho no qual a sociedade e os investidores confiem e cuja aplicação seja feita sem subterfúgios ou qualquer tipo de manobra, dando ao governo a discricionariedade necessária para agir no enfrentamento dos problemas e ao mesmo tempo garantindo que o Brasil possa honrar seus compromissos com os credores ao longo do tempo, atrair investimentos e crescer mais.