
A Petrobras deveria trabalhar com preços de mercado internacional para seus produtos, mas sem considerar nessa conta os custos de frete e seguros que incidem na importação (CIF, na sigla em inglês) e sim apenas com o valor puro da mercadoria (FOB, também na sigla em inglês). Essa ideia surgiu em algumas das muitas discussões que estão em curso no governo sobre o árido tema dos combustíveis. Vista com ressalva e contrariedade por outras fontes, dentro e fora do Executivo, não está claro se tem alguma chance de avançar dentro da estatal. Mas evidencia a complexidade do debate atual e suas diversas ramificações.
Com a guerra criada pela Rússia, os preços do petróleo dispararam e vivem elevada volatilidade. Isso colocou acentuada pressão social e política no governo brasileiro para a adoção de medidas que atenuem os impactos no mercado interno. Nesse ambiente, ideias como subvenção direta de preços e interferência no sistema de paridade da Petrobras, o PPI, voltaram à mesa.
A área econômica resiste à subvenção por conta de seu forte custo fiscal, que só no diesel chegou a ser calculado em R$ 25 bilhões por três meses no Ministério de Minas e Energia. Sobre a política de preços da Petrobras, o time de Paulo Guedes não demonstra grande preocupação e parece aceitar alguma acomodação (que efetivamente já tem ocorrido), dado o tamanho do lucro da empresa (que chegou a incríveis R$ 106,7 bilhões em 2021) e o contexto de guerra internacional.
A estratégia é apostar na aprovação do PLP 11, que pode ser votado nesta quinta-feira (10), mudando a forma de cobrança do ICMS – e provavelmente reduzindo sua arrecadação –, e liberando a desoneração do PIS/Cofins sobre o diesel sem compensação. As negociações estavam intensas nesta quarta-feira (9), e, como antecipou o JOTA, incluíam até a reversão parcial do corte feito no IPI no mês passado para angariar apoio político dos parlamentares ligados à Zona Franca de Manaus.
No fundo, o que se está vendo em Brasília é um clássico conflito distributivo, que envolve os mais diversos atores e com uma série de desdobramentos econômicos, alguns inclusive difíceis de se prever.
Em artigo antecipado ao JOTA a ser divulgado nesta quinta sobre políticas de subsídios de forma geral, o Instituto Millenium destaca que o sistema de preços é um sinalizador que precisa ser respeitado, sob pena de gerar distorções e problemas cumulativos na economia, em decorrência da chamada má alocação de recursos.
“Se a quantidade relativa de gasolina diminui, seu preço aumenta. O aumento no preço relativo da gasolina sinaliza sua maior escassez e incentiva os produtores deste produto a produzirem mais. Concomitantemente, os consumidores também recebem o sinal e são incentivados a reduzirem a utilização da gasolina”, destaca o material. “O produto deixará de ser usado onde ele tinha menor valor, seja porque esta finalidade era pouco importante, seja porque havia grande possibilidade de substituição da gasolina por outro produto. Além disso, capital e trabalho serão direcionados para a produção de gasolina. Esse direcionamento de fatores de produção também é guiado pelos preços relativos (juros do capital e salários)”, complementa.
O material, produzido por Felipe Garcia, Guilherme Stein e Sebastião Ventura, salienta que o problema das políticas de subsídios, gastos tributários e tratamentos diferenciados de impostos é que elas alteram os preços relativos da economia. “Com efeito, elas introduzem ruídos no sinal e pervertem incentivos”, asseveram no paper do Millenium.
O presidente do Instituto Brasileiro do Petróleo (IBP), Eberaldo de Almeida, alerta que não praticar preços de mercado gera risco de desabastecimento e fuga de investimentos. Ele cita como exemplo a situação da Venezuela, que possui a gasolina mais barata do mundo e produz apenas 740 mil barris por dia, muito pouco apesar de ter as maiores reservas do mundo.
Além de defender enfaticamente a política de alinhamento com preços de mercado, ele critica, por exemplo, a ideia citada no início da coluna, de trocar o sistema CIF pelo uso do preço FOB na Petrobras. Segundo ele, a sistemática de paridade de importação e de exportação são aplicadas em situações distintas. A primeira quando o mercado interno é importador líquido e a segunda quando é exportador líquido de determinado produto. Praticar paridade de exportação em mercado importador líquido gera desabastecimento, que acarreta subida de preços.
Almeida diz ainda que a situação atual de defasagem de preços já tem reduzido as importações e já se ouve falar de aumentos na ponta sem que tenha havido aumento nas refinarias da Petrobras.
“Tabelar preços desabastece. O Brasil tem condições de atrair investimentos, mas tem que ter ambiente de negócios que funcione com regras de mercado, que respeite o investimento. É um tiro no pé, quem vai pagar sempre é a população”, afirmou Almeida, defendendo que haja programas governamentais específicos para a população mais impactada, como ampliação do vale gás, subsídios a caminhoneiros autônomos, profissionais autônomos de transporte, entre outros.
O professor de economia da UFRJ e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Bicombustíveis (Ineep), Eduardo Costa Pinto, discorda sobre o risco de desabastecimento. Segundo ele, a Petrobras tem totais condições de importar os combustíveis para completar sua oferta e suprir o mercado local (o que implica em redução de lucro) e possibilidade, como já está fazendo, de ampliar sua capacidade de refino.
Costa Pinto destaca que a estatal hoje tem um retorno sobre o patrimônio de 27,6%, mais que o dobro da média das cinco maiores empresas petrolíferas do mundo. Na visão dele, esses dados são indícios de que o sistema de preços da empresa, por meio da Paridade de Preços de Importação (PPI), está mal desenhado e precisa ser revisto, ainda que os preços externos devam ser levados em conta. “Aplicar o PPI em período de guerra é uma insanidade”, disse.
Ele aponta que, além dos preços maiores, a empresa também tem conseguido reduzir seus custos de produção e tributários. Essa combinação explica o salto no lucro, que tem como reverso um custo maior de combustíveis para toda a população, que teve sua renda já bastante prejudicada pela pandemia. Ele questiona: “De que adianta ter um mercado com maior competição se o efeito disso é um preço mais alto do que em sua versão monopolista?”.
Na visão de Costa Pinto, o Brasil deveria colocar um imposto de exportação sobre o petróleo para financiar subsídios específicos ligados aos combustíveis, como ao gás.
O professor de economia da Unifesp André Roncaglia reconhece que o tema é espinhoso, envolve muitas escolhas complexas, mas diz que a conjuntura não recomenda que o governo fique parado. “É um equilíbrio difícil, mas algo precisa ser feito. O preço de energia é fundamental”, afirmou, defendendo também uma discussão mais ampla sobre o PPI da Petrobras.
Para ele, os “lucros exorbitantes” da empresa precisam ser colocados no contexto de uma companhia estatal que fornece um bem estratégico, essencial. “Mas obviamente não é trivial a maneira de se organizar os diversos interesses envolvidos”, salientou, defendendo que governo e setor privado discutam como se chegar a um equilíbrio no qual ônus e bônus sejam divididos de forma mais adequada. “Hoje, todo o ônus se transfere para sociedade, afetando a população de mais baixa renda, que gasta mais com alimentos e energia”, salientou.
Fica claro que não há saída fácil para o problema. Governo e Congresso têm uma tarefa que não pode ser meramente orientada pela lógica eleitoral, que infelizmente também tem sido uma conselheira dessas discussões. E é preciso considerar as restrições fiscais do país, bem como a situação de dificuldade da maior parte da população.