Partindo de patamares pressionados e sem dar sinais mais consistentes de recuo, o cenário inflacionário ganhou uma nova fonte de incerteza com a invasão da Ucrânia pela Rússia e as sanções econômicas que se seguiram. Há preocupações para os impactos de curto prazo, derivadas da disparada de preços de commodities como petróleo, minério de ferro e de produtos agrícolas. E também para o médio prazo, como na questão dos fertilizantes, majoritariamente importados da Rússia, que podem complicar as próximas safras.
Por outro lado, uma perda de dinamismo da economia mundial e eventual continuidade da valorização cambial verificada no Brasil no primeiro bimestre podem ajudar a conter os preços.
No segmento agrícola, a maior inquietação do governo claramente é com os adubos, que podem frear a próxima safra e elevar os preços de alimentos. Declarações públicas da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e de interlocutores da área econômica evidenciam isso.
“A questão dos fertilizantes é realmente a que mais preocupa, pois o Brasil importa muito não só da Rússia, mas também da Bielorrússia [Belarus], aliada de Putin que sofre sanções da UE e não está conseguindo embarcar suas cargas pelo Báltico”, afirmou ao JOTA o subsecretário de política agrícola da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia, Rogério Boueri.
Ele explica que 94% do potássio usado no país são importados, sendo que, desses, 16% têm origem na Bielorrússia e 26% na Rússia. Nos nitrogenados, a dependência de importação é de 76%. “No caso da ureia, 18% vêm da Rússia, já o nitrato de amônio a porcentagem é 98%”, comenta, acrescentando que nos fosfatados a dependência de importações é de 55%, sendo 24% da Rússia.
Há ainda a questão da forte alta de preços das commodities agrícolas, com impacto mais direto no curto prazo. “Milho, trigo, soja, açúcar e algodão devem permanecer em altos patamares. Milho e trigo porque a Ucrânia é grande produtor e suas cadeias de produção e comercialização estão sofrendo bastante com a guerra; açúcar e algodão são correlacionados com o petróleo, que está subindo. Esse efeito não é ruim para os produtores brasileiros, mas terá impacto na inflação interna”, apontou Boueri.
A alta de alguns desses produtos, utilizados também como rações (milho e soja), pode ainda impactar outros mercados, como de suínos e aves, elevando custos, lembra o técnico. Esses setores, aliás, devem também sofrer outro baque, pelo lado da demanda, já que devem perder, pelo menos temporariamente, o importante mercado russo. Nesse último caso, o efeito seria deflacionário. Nesse contexto, os produtores podem ficar na péssima situação em que a demanda derruba preço, mas os custos sobem e comprimem as margens de lucro.
Para o economista-chefe do Banco Fator, José Francisco Gonçalves, de forma geral essa crise sinaliza uma inflação mais alta, tanto lá fora como aqui dentro. Ele ressalta que o Fed (o Banco Central americano) está tentando deixar claro seus próximos passos para evitar sustos, mas demostrou claramente que está preocupado com a trajetória de inflação.
Gonçalves diz que esse quadro só dificulta mais toda a situação no Brasil, tornando mais nebuloso o cenário para a trajetória de taxa de juros, que o mercado via próximo de se encerrar. “Entramos em trajetória de incerteza que complica bem o fim do ciclo”, salientou Gonçalves, que prevê um IPCA de 6% para este ano, acima dos 5,6% da média do mercado e com “viés de alta”.
Ele acrescenta que o cenário do Focus (pesquisa junto ao mercado) para 2023, para onde já mira a política monetária, começou a piorar, ainda que muito discretamente. “Eu estou com 6% de inflação para 2022 e o viés é claramente para cima, mesmo com essas mágicas de IPI”, disse, em referência ao corte de 25% nas alíquotas do tributo anunciado na última sexta-feira (26/2).
Para o economista-sênior da LCA Consultores, o IPI deve dar uma ajuda na inflação, mesmo que não haja repasse integral do tributo, contrabalançando pelo menos parte dos efeitos negativos da crise geopolítica.
Ele destaca que, além do problema dos fertilizantes, há pressões altistas de preços vindos de petróleo, trigo, soja, milho, produtos usados em semicondutores. “Isso vai virar inflação instantaneamente”, disse Borges.
Ele pondera, contudo, que a alta do petróleo, como o Brasil hoje é exportador líquido do produto, deve melhorar os “termos de troca” (relação entre preços de exportação e importação), o que induz a uma valorização da taxa de câmbio. Nesse caso, também haveria alguma uma ajuda para conter a inflação.
Vale lembrar que neste início de ano houve uma forte valorização do real ante o dólar, que trouxe a cotação da faixa de R$ 5,60 para perto de R$ 5. Com a deflagração da guerra pela Rússia, a taxa de câmbio saltou para próximo de R$ 5,20 no fim de fevereiro. O movimento, porém, foi parcialmente devolvido na volta do Carnaval e a divisa fechou o primeiro dia útil de março a R$ 5,10.
A guerra também pode gerar uma redução no crescimento mundial, diz Braulio, lembrando que o choque pode se assemelhar ao ocorrido na Guerra do Golfo (1990-91), quando o PIB mundial caiu 1% em dois trimestres. Recessões normalmente são desinflacionárias, mas não deve ser suficiente para conter as outras pressões altistas.
Outro fator de baixa na inflação, sem ligação com o conflito, é a possibilidade de bandeira verde na energia elétrica – hoje está em bandeira vermelha –, lembra Borges. Com as chuvas em ritmo intenso, os reservatórios de hidrelétricas aumentaram muito e permitirão ao governo determinar a redução do custo de energia. Na área econômica, apurou o JOTA, trabalha-se com a possibilidade de a bandeira ser revista já em abril.
“Quando se somam desenvolvimento globais e questões locais que coincidem temporalmente, nós devemos manter nossa projeção de IPCA em 6%, mas a composição muda bastante. Seguirá acima da meta, mas bem menos que os 10% do ano passado. E, claro, estamos reavaliando esse cenário o tempo todo”, disse.
Como se pode ver, não bastasse a tragédia humanitária, a guerra de Putin está tornando a situação econômica mundial, ainda marcada pela pandemia, bem mais delicada. E isso sem considerar os riscos de uma escalada em nível internacional do conflito. O Banco Central brasileiro e o Ministério da Economia terão que ter muita sagacidade para navegar nesses mares agitados e tentar conter os impactos dos possíveis choques no país. É bom apertar os cintos.