Opinião e Análise

Cristiano Aguiar de Oliveira

Luciano Benetti Timm

Recentemente a Uber anunciou o encerramento das atividades da Uber Eats no Brasil a partir de março de 2022. Nas redes sociais e em alguns veículos da mídia tradicional, associou-se a decisão ao <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2244218">PL 1665/2020</a>, de autoria do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que estabeleceu a <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/sociedade-digital/empresas-da-gig-economy-criam-beneficios-a-parceiros-para-aprimorar-modelo-de-negocios-19112021">obrigatoriedade de um seguro para entregadores</a> que irá vigorar enquanto durar a pandemia da Covid-19.
O projeto se tornou a <a href="http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2022/Lei/L14297.htm">Lei 14.297/2022</a>, que acabou sendo sancionada pelo presidente da República um dia antes de a Uber informar a sua decisão. Essa proximidade induziu muitos a associar os dois eventos e a utilizar essa possível relação para uma suposta confirmação de que direitos sociais dificultam o ambiente de negócios. Todavia, em ciência, causalidade e correlação devem ser provadas. E, também, no mundo corporativo, decisões como essa costumam ser avaliadas cuidadosamente e não são algo repentino.
Claro, decisões de Cortes trabalhistas no mundo todo têm trazido dificuldades para a Uber como um todo – e consumidores correm mesmo o risco de ficarem dependentes dos táxis novamente –, mas a referida Lei 14.297 trata apenas, fundamentalmente, de estabelecer um seguro obrigatório. Há na literatura de Análise Econômica do Direito (AED) autores que defendem o seguro obrigatório de acidentes (entre outros), como internalização do custo de atividades econômicas e sua repartição na cadeia de consumo. Por isso, nossa hipótese é outra, ou seja, de que foi uma decisão decorrente da estrutura de mercado de elevada concentração em que a Uber Eats atuava.
Em primeiro lugar, precisamos entender o que é um aplicativo de entregas. Um aplicativo de entregas é uma plataforma digital que possui três lados <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>: consumidores, entregadores e produtores de bens e serviços (restaurantes, farmácias etc.). O aplicativo pode obter receitas de todos os lados desse mercado e os preços e pagamentos realizados em cada lado são definidos de acordo com as elasticidades da oferta e da demanda de cada um desses lados.
O potencial para gerar receitas de um aplicativo de entregas está condicionado à sua capacidade de gerar externalidades de rede. Em outras palavras, assim como as principais plataformas digitais da internet (redes sociais, por exemplo), a lucratividade de um aplicativo será maior quanto maior for a sua capacidade de atrair participantes em todos os seus lados.
No caso dos serviços de entrega de comida, quanto mais consumidores tiverem o aplicativo instalado em seus smartphones e mais restaurantes participarem da plataforma, maiores são os ganhos para todos, pois consumidores ganham oportunidade de escolha (diversidade), enquanto restaurantes ganham acesso a uma gama de consumidores que provavelmente não conseguiriam caso não participassem da plataforma digital.
Logicamente isto também atrai entregadores, que querem estar vinculados a uma plataforma que seja capaz de gerar uma quantidade de entregas que maximize os seus rendimentos. Este ganho que todos os participantes obtêm por aderir ou utilizar uma plataforma capaz de atrair muitos participantes em todos os seus lados é o que se define como externalidade de rede.
Assim, diante da necessidade de atrair participantes, a estratégia mais comum adotada por aplicativos de entregas para maximizar as suas receitas é não realizar cobranças diretas para a participação de consumidores. Ou seja, diferentemente de algumas plataformas digitais que distribuem conteúdo audiovisual que costumam cobrar por uso (pay-per-view) ou por assinaturas para se ter acesso a um pacote de conteúdos, os aplicativos de entregas podem ser instalados e utilizados sem custos imediatos para os consumidores – que pagarão apenas a taxa de entrega.
Além disso, não é raro utilizar a estratégia de realizar pagamentos a consumidores na forma de bônus por uma primeira compra, para retornar ao uso do aplicativo, ou pelo seu uso frequente. Isso ocorre porque os consumidores são o lado da plataforma com a demanda mais elástica (se fosse cobrado dos consumidores para utilizá-la, muitos consumidores deixariam de usar a plataforma) e ter uma quantidade suficientemente grande de consumidores potencializa o poder de mercado nos outros lados da plataforma. E também o lado mais valioso, porque é o que paga, o que orienta o mercado com seu comportamento, que pode ser mapeado a partir dos seus dados.
Nessa esteira, são várias estratégias econômicas e comportamentais para atrair e manter consumidores na plataforma, o que depende de elevados investimentos de marketing e provoca baixa margem de rentabilidade, o que constituem elevadas barreiras à entrada nesse mercado. Isso pode provocar uma concentração econômica em um agente, de modo que o aplicativo que possui uma grande quantidade de consumidores cadastrados ativos pode passar a ter um poder de mercado semelhante ao de um monopsonista (único comprador) no lado dos entregadores e monopolista (único vendedor) no lado dos produtores (restaurantes), além de muitas informações e dados sobre comportamento dos consumidores online.
O poder de mercado de um aplicativo de entregas pode ser ainda potencializado com uma participação agressiva de aquisição de aplicativos entrantes concorrentes e também por meio da utilização de estratégias de discriminação de preços pelo lado dos restaurantes. De maneira que a plataforma pode oferecer vantagens (taxas menores, maior exposição no aplicativo, verbas de publicidade etc.) a restaurantes capazes de atrair um número maior de consumidores e impor maiores custos de participação aos novos aplicativos entrantes no mercado.
Embora essa estratégia tenha o potencial de dificultar a livre concorrência apenas dentro da plataforma, não se pode ignorar o fato de que pode haver prejuízos à concorrência no setor fora da plataforma caso ela seja relevante para o mercado como um todo. Isso de certa forma ocorreu na pandemia, quando as receitas obtidas através dos aplicativos de entrega ganharam maior importância para os estabelecimentos que tinham restrições para atender clientes em suas instalações e não tinham capital ou expertise para investir em sua própria plataforma tecnológica.
Todavia, tal estratégia também pode ser nociva à concorrência entre os aplicativos de entrega, principalmente se tais vantagens dadas a alguns restaurantes relevantes estiverem associadas a um contrato de exclusividade com determinada plataforma. Contratos de exclusividade não são proibidos, não se tratando de um ilícito antitruste per se, mas precisam ter razoabilidade econômica e não podem fechar substancialmente o mercado.
Para entender o impacto que os contratos de exclusividade possuem na concorrência entre os aplicativos de entregas, é útil fazer uma analogia com um outro mercado de plataformas digitais: os pacotes de canais de TV. Para atrair consumidores, operadores de streaming ou TV a cabo/satélite oferecem combinações de canais que imaginam atrair o maior número de assinantes. A operadora que tiver a exclusividade nesses canais levará todo o mercado porque os consumidores dificilmente irão comprar os pacotes de mais de uma operadora. Ou seja, tem-se uma situação em que “the winner takes all”, tal como já ocorre, por outras razões, nas redes sociais. No mercado de aplicativos de entrega a situação não é diferente, pois todo aplicativo oferece um serviço que, na verdade, é um pacote com restaurantes que podem interessar mais ou menos os consumidores – além da tecnologia embarcada e aspectos não desprezíveis de experiência do usuário com a plataforma.
Essas estratégias, aquisição de concorrentes e contratos de exclusividade ou mesmo outras formas de “cooperação”, vêm sendo utilizadas há muito tempo pela empresa líder do mercado de entregas de comida por aplicativos, o iFood. Tal prática foi alvo de uma representação com pedido de medida preventiva por parte de um de seus concorrentes <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o aplicativo Rappi, junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que foi atendida de forma parcial e, desde março de 2021, a empresa dominante não pode mais celebrar novos contratos de exclusividade.
A decisão da autoridade de defesa da concorrência ainda estabeleceu que os contratos poderiam ter no máximo um ano de duração, sempre com anuência do restaurante, e que os contratos de longo prazo que estivessem em vigor seguiriam válidos. Aparentemente, a decisão foi insuficiente para garantir a concorrência no setor, e o Uber Eats pode ser apenas a primeira entre as grandes empresas desse mercado a abandoná-lo.
A existência de externalidades de rede e a possibilidade de continuarem existindo contratos de exclusividade e outras técnicas de “cooperação” (como adiantamento de créditos) criaram uma barreira muito grande à entrada de novos concorrentes no mercado de aplicativos de entrega, pois dificultam bastante a captação de novos restaurantes e consumidores.
Portanto, considerando todos os aspectos econômico-jurídicos aqui elencados, atribuir o encerramento da operação da Uber Eats no Brasil ao seguro obrigatório imposto pela Lei 14.297/2022 pode acobertar um problema maior que está ocorrendo nesse mercado.
É verdade que o seguro representa um aumento de custos para as plataformas, mas dado o seu poder de mercado esses custos são compartilhados com os outros lados da plataforma, logo, dificilmente este aumento seria suficiente para inviabilizar economicamente empresas do porte da Uber Eats, embora não se possa descartar que tal medida venha a ser uma barreira à entrada de empresas de pequeno porte, que podem optar por aguardar o fim da pandemia.
O fato é que os mercados de plataformas digitais possuem mecanismos concentradores que merecem atenção especial por parte das autoridades brasileiras, na medida em que estas plataformas ganham relevância e tomam parte das receitas geradas nos mercados físicos. Não é do interesse da sociedade brasileira que o mercado de aplicativos de entrega de comida seja concentrado no Brasil em somente uma empresa, pois, como se sabe, segundo a teoria econômica, a presença de uma empresa que é ao mesmo tempo um monopólio e um monopsônio é capaz de gerar perdas significativas de bem-estar para restaurantes, entregadores e consumidores. Tudo isso sem falar do potencial de concentração de muitos dados dos consumidores no ambiente dessa plataforma, afinal, sabemos, como diz o ditado, que “informação é poder”.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> RYSMAN, M. The Economics of Two-Sided Markets. Journal of Economic Perspectives, v. 23, n. 3, p. 125–143, 2009.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2] </a>Inquérito administrativo 08700.004588/2020-47, que pode ser consultado em: <a href="https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcaPonKpemYl591TZDVz41cKkeMG3znSccU-isTZDv-qj">https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcaPonKpemYl591TZDVz41cKkeMG3znSccU-isTZDv-qj</a>

Uber Eats

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JOTA

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