Coluna da ABDE

Risco e incerteza nos contratos do setor elétrico

Força maior, incerteza fundamental e a obrigação de renegociar

stf, icms
Crédito: Pixabay

A pandemia de Covid-19 trouxe um grande impacto para vários setores da economia [1]. A repercussão sobre a demanda do setor elétrico, o faturamento das distribuidoras e os efeitos sobre toda a cadeia econômica têm sido imensos. Duas consequências são imediatas para o setor elétrico:

a) Redução do mercado decorrente da diminuição do consumo. Essa diminuição se dá tanto pelo consumo de energia elétrica (kWh) como pelo uso da rede, também denominado de demanda (kW) e

b) Possibilidade do aumento da inadimplência em decorrência da limitação da capacidade dos consumidores de honrarem seus compromissos perante a distribuidora de energia elétrica, ou, no caso dos consumidores especiais e livres, perante os agentes vendedores naquele ambiente de contratação.

O ponto fulcral é entender se, de fato, o evento Covid-19 pode ser caracterizado como força maior e qual o efeito disso sobre os contratos em vigor. Nesse sentido, é importante perquirir se a alegação desse evento extraordinário legitimaria os consumidores a simplesmente não pagarem suas faturas contratadas durante a pandemia, ou se haveria, diante de uma situação excepcional de incerteza extrema, a obrigatoriedade de negociar, inclusive porque as contrapartes são igualmente afetadas, contudo ainda obrigadas à adequada prestação do serviço público de distribuição concedido.

No caso, temos em mente a celebração dos contratos entre as distribuidoras de energia e os consumidores do grupo A (indústrias e comércio), ou seja, os médios e grandes consumidores. Nesse tipo de contrato de fornecimento de energia elétrica[2], há o estabelecimento de uma demanda contratada (potência, caracterizada pela quantidade de energia consumida no tempo), podendo e os consumidores usarem qualquer montante de energia dentro dessa demanda (limitação da potência disponível na rede).

Ocorre como se fosse um contrato futuro, onde a disponibilidade já estivesse predeterminada. Esses tipos de contratos são diferentes dos contratos do consumidor residencial em que são pagos todos os custos apenas com base no consumo medido.

Ocorre, no entanto, que com a crise de Covid-19 o mercado foi deprimido enormemente e os consumidores do grupo A simplesmente não possuem capacidade financeira para o pagamento integral e tempestivo pela demanda contratada. Argumentam para tanto a existência de força maior e alegam a possibilidade de, durante a pandemia, pagar apenas pela demanda efetivamente medida, sendo a diferença entre contratado e o medido paga em momento posterior.

Nesse sentido, é preciso discutir qual a saída jurídica viável diante dessa situação e qual o caminho legal para promover a mudança emergencial desses contratos entre as distribuidoras e os consumidores do grupo A.

Cumpre lembrar que esses contratos são contratos privados, embora sejam fortemente regulados. Conforme lembra VERAS [3], uma da funções regulatórias que incidirá sobre esses contratos privados será normativa (rulemaking).

Assim, segundo o autor, trata-se de contratos privados coligados a contratos administrativos, pois ostentam a mesma unidade finalística e serão regidos por normas que compatibilizem o principio da autonomia de vontade com o dever de prestação adequada do serviço público.

Nesses contratos coligados, eventos que repercutem em um contrato podem espraiar seus efeitos sobre outros contratos. Assim, como arremata VERAS, “o que diferencia essa espécie contratual é a sua causa comum, consubstanciada em um nexo econômico articulado, estável e funcional, que se destina ao atendimento de uma finalidade, que será alcançada pela conexão”.

Em ultima instância, podemos dizer que o plexo de relações contratuais formadas no âmbito da exploração de determinada concessão é interdependente. Para tanto é preciso discutir os argumentos mais avançados sobre a teoria dos contratos.

Teoria dos contratos incompletos

O modelo tradicional dos contratos regidos pelo nosso código civil e os contratos administrativos partem da ótica neoclássica na qual os contratantes apresentam racionalidade ilimitada e os contratantes podem processar de forma ótima todas as informações que recebem.

Há, portanto, uma informação livre e plenamente inteligível pelas partes quando da assinatura da avença, o que determina a ausência de dificuldades cognitivas. Além disso, no contrato clássico, as partes estão preocupadas em maximizar suas funções de utilidade, não preocupadas em trapacear ou levar vantagem de informações privilegiadas. Por fim, na síntese neoclássica, as trocas são feitas a custo zero, o que impõe outra racionalidade na elaboração contratual.

Esse modelo contratual clássico parte do pressuposto de que as partes têm interesses antagônicos que se harmonizam pelo alinhamento de incentivos pela relação contratual.

Além disso, esses contratos devem (ou deveriam) estabelecer uma partilha de riscos entre as partes e aquilo (somente aquilo) que fosse excepcional e fora das circunstancias previsíveis deveria ser tratado com teoria da imprevisão, levando a obrigatoriedade de reestabelecimento do equilíbrio econômico financeiro do contrato e, em caso extremos, à sua rescisão.

Nesses contratos deve ser favorecida a cláusula rec sic standibus, determinando que, dada a mudança nas circunstâncias que afetam o contrato, o equilíbrio estabelecido ex ante, ou seja, quando da celebração do contrato deve ser reestabelecido.

No caso dos contratos administrativos, não é outra a dicção do artigo 37, XXI da Constituição Federal e o artigo 65, II, d, da lei 8666/93. Um pressuposto clássico no direito administrativo brasileiro é que os contratos são completos, muito embora nossa legislação (lei 8666/93) possibilite a arguição da teoria da imprevisão, do caso fortuito e da força maior no caso de lacuna ou situação excepcional.

Mas esses são (ou deveriam ser) eventos tão extraordinários que a base conceitual, o benchmark teórico aponta no sentido da completude. Por contratos completos, enfim, entendemos aqueles que exaustivamente estabelecem as hipóteses que podem comprometer a sua execução. Trata-se, como veremos, de uma falácia cognitiva que promove uma série de problemas durante a fase de execução contratual.

Outro ponto importante é que há uma imprecisa percepção que no contrato está estabelecido um contingente claro de direitos e obrigações entre as partes que por conta do judiciário ou do controle esse equilíbrio pode ser facilmente reestabelecido, como se fossem pratos de uma balança. Em contratos complexos é tudo mais difícil.

No caso de concessões de serviço público e em contratos privados regulados (como é o caso dos contratos de comercialização de energia elétrica), por exemplo, temos uma equação que apresenta de um lado uma matriz de risco e a necessidade de atingimento de um determinado nível de performance e de outro o regime de remuneração do contrato.

Em situações de stress sobre o contrato, os efeitos são diversos e correlacionados, de maneira que reequilibrá-los é tarefa complexa. Quem pode melhor fazê-lo são as partes ou um terceiro que compreenda a dinâmica econômica do contrato, o que privilegia os instrumentos de mediação e arbitragem.

Nos contratos clássicos, o reequilibro deve ser buscado tendo como referência dois parâmetros fundamentais, a boa-fé objetiva e o princípio da base do negócio. Em ambos está intrínseco que a informação é perfeita, ou melhor, que as partes puderam tomar decisões com base em “partes suficientes” de informação.

Aliás, quando definimos o conceito de manutenção do reequilibro econômico financeiro dos contratos para preservar as “condições efetivas da proposta” estamos fazendo com que a vontade retroaja, tentando perquirir o que os agentes poderiam inferir do futuro do contrato quando o celebraram.

Esse modelo pode funcionar para contratos simples, contratos nos quais os riscos são baixos e o tempo de sua duração é reduzido. Não se aplica, no entanto, aos contratos complexos de elevados sunk costs, deliberada incompletude contratual e prestação diferidas em longo período de tempo. Esse último caso se aplica aos contratos celebrados entre as distribuidoras de energia e os consumidores do grupo A.

Teoria dos Contratos Relacionais

O contrato celebrado entre as distribuidoras e os consumidores do grupo A é um contrato relacional [4]. Nesse caso, há a antecipação de que o relacionamento entre as partes terá que se ajustar com o tempo, observando a necessidade de renegociação periódica. É importante notar que esses tipos de contrato deixam as partes relativamente vulneráveis quando grandes investimentos estão envolvidos e as regras de renegociação são gerais.

Em outras palavras, em muitos desses contratos há elevados custos afundados – sunk costs –, o que enseja a possibilidade de oportunismo entre as partes, mas também induz a ideia de que as partes estão ligadas fortemente à manutenção do contrato. Inclusive por essa razão é que várias das condições de contratação e de prestação dos serviços são largamente regulados por ente público.

Dessa forma, deve-se preservar a avença com base no principio da força obrigatória dos contratos[5], inclusive indo além da teoria da imprevisão. Isso tem a ver basicamente com a necessidade de inferir o mecanismo peculiar de partilha de riscos nesses contratos.

Até porque a imprevisão é ínsita aos contratos incompletos como os contratos relacionais. Assim, podemos dizer que o contrato relacional é uma fonte de imprevisão endógena[6].

No caso de contratos relacionais é muito importante fazermos a diferenciação entre risco e incerteza (Knight [7], 1921). O risco seria uma situação na qual seria possível inferir uma certa distribuição de probabilidade para uma evento.

Assim, em um contrato de concessão de rodovia, por exemplo, com base em experiências anteriores, bem como tendo como lastro as circunstâncias econômicas, pode-se inferir qual ao risco de demanda e qual a probabilidade de ocorrência.

No caso da incerteza, ao contrario, não há como saber se um evento acontecerá ou não, assim não é possível inferir uma distribuição de probabilidade para ele. E no caso da incerteza fundamental [8], sequer imaginar qual o impacto que isso teria no contrato.

Por exemplo, parece sobremaneira irracional, oneroso e proibitivo estabelecer na matriz de risco do contrato uma estimativa de evento improvável, tal como alocar o risco da queda de um meteoro de grandes proporções atingindo a terra, ou mesmo de uma pandemia. Ninguém fará isso.

Uma, porque não podemos prever nem estimar esse evento e também porque isso certamente está longe de nossa capacidade cognitiva.

Ainda no caso da incerteza, há de se diferenciar a incerteza ambígua (ambiquity uncertainty) da incerteza fundamental (fundamental uncertainty). No primeiro caso, não temos capacidade cognitiva de estimar os eventos e então considerarmos como incerteza mas não risco.

Imagine-se um contrato celebrado há 50 anos, em que as condições econômicas e tecnológicas então existentes para auxiliar as previsões eram muito mais restritas.

No caso da incerteza fundamental, ai sim seria inviável prever os eventos e os impactos deles nos contratos. Nesse caso – e nesse caso! – estaremos diante de uma situação clara, de força maior, albergada pela teoria da imprevisão.

Por isso, discordo da opção de que diante da pandemia deve-se repactuar a matriz de risco do contrato. Isso é inócuo porque a Covid-19, assim como a queda de um meteoro, não estariam (e jamais estarão) na matriz de risco mas sim no imponderável fundamental.

Considerando que o caso da ocorrência da pandemia de Covid-19 impactou fortemente os contratos entre as distribuidoras e o os consumidores do grupo A, podemos considerar tratar-se de caso de força maior.

Ocorre, no entanto, que o impacto da forca maior em contrato relacionais como esse em análise é diferente do existente em contratos convencionais. Nos contratos clássicos, albergados pela doutrina tradicional do direito brasileiro, a existência da força maior levará de imediato ao reequilibro econômico financeiro do contrato com vista a restabelecer a avença no momento da celebração.

Isso, como já vimos, para os contratos relacionais não pode ser assim. O mais importante é preservar a natureza econômica intrínseca estabelecida pelo contrato, em outras palavras, a preservação da estrutura econômica do contrato é o correto mecanismo de governança nos contratos relacionais.

Logo, a regra é renegociar. Ouso dizer que há uma precedência da renegociação entre as partes, inclusive por por mediação ou arbitragem sobre decisões precipitadas que buscam retroagir a vontade à assinatura do contrato porquanto isso é impossível de ser feito.

Evidente que há sempre uma infinidade de possibilidades entre o contrato clássico e o relacional. No entanto, uma lição clara é a vulnerabilidade dos contratos diante da obsolescência e incompletude. O contrato protege contra o oportunismo quando ele antecipa todos os importantes eventos e provê apropriadas contingências para eles.

Assim, a renegociação contratual, os contratos relacionais e contratos incompletos são temas relevantes à luz de argumentos como direitos de propriedade, discricionariedade, instituições e governança que muito contribuirão para o aprofundamento do entendimento das relações contratuais complexas, como sói ocorrer no âmbito da infraestrutura.

Parece óbvio que o contrato na tradição da teoria econômica neoclássica pode ser apenas um ponto de referência, um standard para auxiliar na interpretação de contratos mais sofisticados.

Seria uma espécie de “âncora doutrinária” tal como fora a ideia de concorrência perfeita. Por óbvio, essas hipóteses rigorosas (racionalidade absoluta, completude contratual, simetria informacional) devem ser relaxadas em um ambiente econômico complexo, sobremodo quando estamos diante de contratos relacionais (como os de infraestrutura).

Portanto, o evento da Covid-19 é um caso de forca maior, mas o que se discute aqui são os efeitos de força maior em contratos relacionais com forte presença de sunk cost, como se dá entre os contratos celebrados entre as distribuidoras e os consumidores do grupo A.

Há uma necessidade de preservar a “teoria econômica do contrato” mais do que a “teoria da imprevisão”. Assim, a principal medida é preservar o contrato, sendo, portanto, imperativo renegociar.

 


[1] Quero agradecer os comentários imprescindíveis de Rafael Veras, Luiz Nelson Araújo,  Luiz Eduardo Diniz Araújo e Luiz Gustavo Camargo Barduco Cugler. Todos estão eximidos das falhas porventura encontradas no texto.

[2] Ha também os Contratos de Conexão e de Uso de Distribuição, assim como os Contratos de Compra de Energia Regulada.

[3] VERAS, Rafael. Os contratos privados celebrados por concessionários de serviços públicos e a sua regulação. Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 101, p. 219-240, jan./fev. 2017

[4] MacNEIL, Ian. Contracts: Adjustment of long-term economic relation unde classical , neoclassical , and relational contract law. 72 Nw. U.L. Rev 857 1977-1978.

[5] NALIN, Paulo. A força obrigatória dos Contratos no Brasil: Uma visão contemporânea e aplicada `a luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos princípios sociais dos contratos. Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014

[6] BOUTHINON-DUMAS, Hugues. Les Contracts Relationnels et la Théorie de L`imprevision. Revue Internationale de droit economique. 2001/3 t. XV, 3. Pag 339 `a 373.

[7] KNIGHT, F. Risk , uncertainty and profit. London: Houghton Mifflin, 1921. (second edition 1933).

[8] KIRAT, Thirry. L’allocation Des Risques Dans Les Contrats : De L’économie Des Contrats « Incomplets » À La Pratique Des Contrats Administratifs. « Revue internationale de droit économique »2003/1 t. XVII, 1 | pages 11 à 46