Tributário

Problemas da criminalização do inadimplemento de ICMS declarado agravados na pandemia

Orientações do STF e do STJ tornam-se ainda mais problemáticas em meio à pandemia

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Crédito: Vladislav Reshetnyak / Pexels

Muito se tem debatido sobre os problemas criminais vinculados à crise econômica decorrente da pandemia, especialmente no que toca aos crimes contra a ordem tributária. A questão é particularmente grave em relação ao delito tipificado no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90, que criminaliza a conduta conhecida como apropriação indébita tributária, consistente em “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

STJ e STF recentemente assentaram ser típica a conduta de declarar o ICMS próprio e não o recolher. A Suprema Corte fixou tese segundo a qual “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990”.

A orientação adotada pelas cortes superiores, como se tem apontado desde os respectivos julgamentos, é repleta de problemas, agora aprofundados por conta da crise econômica provocada pela pandemia.

O mais evidente decorre da duvidosa constitucionalidade da interpretação levada a cabo, a qual faz com que o art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90 flerte e praticamente se confunda com a prisão por dívida, sabidamente inconstitucional. Outras questões, todavia, surgem com mais destaque em meio à pandemia[1].

Com a conjugação da crise econômica com a orientação firmada pelas cortes superiores quanto à criminalização do inadimplemento de ICMS, delineia-se um cenário de profunda insegurança para o contribuinte. Em relação à orientação jurisprudencial, tem-se apenas a tese firmada pelo STF, nos termos acima transcritos. A tese, por si só, não é autoexplicativa[2].

Não se sabe, por exemplo, se os elementos contumácia (“de forma contumaz”) e dolo de apropriação acrescentam novos requisitos para a tipificação da conduta: basta o inadimplemento do tributo, ou é necessária conduta contínua e deliberadamente ofensiva ao Fisco? A tese inova em relação à interpretação de outros tribunais, como o TJSC e o STJ? Dado o pouco tempo decorrido desde a fixação da tese e a não publicação dos votos proferidos no julgamento, essas indagações ainda não foram respondidas.

Há, ainda, outro importante questionamento vinculado à jurisprudência: quais são, para os crimes tributários, os parâmetros para o reconhecimento de excludente de culpabilidade ou mesmo de ilicitude? A indagação relaciona-se com o usual argumento de que o inadimplemento tributário foi causado por profundas dificuldades financeiras do contribuinte e que, portanto, a conduta omissiva – o não recolhimento do tributo – não configuraria um crime (embora não deixe de representar um ilícito tributário e não exima o contribuinte do recolhimento da exação).

Em geral, a jurisprudência dos tribunais é resistente ao reconhecimento de causas excludentes de culpabilidade ou de ilicitude, declaradas somente em situações muito extremas. Além disso, as cortes costumam ser reticentes em relação a eventuais requisitos autorizadores do reconhecimento das causas exculpantes ou justificantes, de forma que a análise é extremamente casuística, sem o suporte de critérios sólidos.

Sob outra perspectiva[3], observa-se que a criminalização do inadimplemento de tributo devidamente escriturado cria incentivos opostos àqueles subjacentes às sanções fixadas na lei penal, o que faz com que se torne mais vantajosa a prática dos crimes tipificados no art. 1º da Lei n. 8.137/90.

À sonegação tributária, a propósito, é cominada pena de dois a cinco anos de reclusão, e multa, contra seis meses a dois anos de detenção, e multa, na hipótese do art. 2º da mesma lei. Todavia, a pena abstratamente cominada não necessariamente corresponde à pena esperada pelos agentes, que é equivalente à multiplicação da sanção pela probabilidade de sua efetiva imposição.

Partindo das premissas lançadas por Gary Becker em seu clássico “Crime and punishment: an economic approach[4], pode-se representar o raciocínio (simplificando-o, dadas as limitações deste escrito) com a função S x P = C, em que S representa a sanção penal, P a probabilidade de sua efetiva imposição e C o custo decorrente da prática do delito. Assim, se a probabilidade de que determinada pena seja imposta (P) é de 50% (ou 0,5), o custo esperado pelo agente (C) será correspondente à metade da sanção legalmente cominada ao delito (S).

No caso da “apropriação indébita” de ICMS, a probabilidade (P) de que a pena seja efetivamente imposta é muito alta, porque o próprio contribuinte declara ao Fisco o tributo devido, mas não o recolhe. Isso exime o Estado de empreender diligências investigatórias, de modo que, em um primeiro momento, a postura das autoridades persecutórias é meramente passiva. Consideradas intercorrências inerentes às persecuções penais – como prescrição, limitação da capacidade operacional dos órgãos responsáveis e falecimento ou fuga do agente –, suponha-se, para fins de cotejo, que haja uma probabilidade de punição de 90% (ou 0,9). Tem-se, com isso, penas esperadas (C) entre 5,2 meses e 1,8 ano de detenção, e multa.

Nos crimes de sonegação tributária (art. 1º), por outro lado, cuida-se de atos sub-reptícios, que envolvem omissão (incisos I e II), falsidade (I, III e IV), fraude (II) e inexatidão (II e IV), apenas para ficar com os delitos expressamente mencionados pela Súmula Vinculante 24. Por isso, a probabilidade de condenação (P) vinculada a esses atos é, naturalmente, muito reduzida: conjuga-se a evasão à fiscalização tributária à necessidade de diligências investigativas por parte das autoridades persecutórias (nos âmbitos tributário e penal).

Somam-se a isso, ainda, as peculiaridades decorrentes da aplicação da mencionada Súmula Vinculante, que representam significativo acréscimo em termos de tempo e complexidade. Suponha-se, diante disso, que a probabilidade de condenação vinculada à sonegação tributária seja de 10% (ou 0,1)[5]. As penas esperadas pelos agentes (C) orbitam, assim, entre 2,4 e 6 meses de reclusão, e multa.

Embora essa comparação não passe de uma elucubração – até porque não há estimativas precisas quanto às reais probabilidades de condenação vinculadas aos crimes tributárias –, é ilustrativa para apontar que, com a criminalização do inadimplemento de tributo escriturado, criou-se um incentivo para que os agentes, em vez de declarar o imposto e não o pagar, passem a sequer declará-lo, porque o custo esperado pela prática de tal conduta fraudulenta é inferior àquele vinculado à apropriação indébita tributária.

Portanto, a pretexto de combater a inadimplência tributária, o Estado acaba por incentivar a sua prática por meios fraudulentos, de forma a se afastar ainda mais da finalidade político-criminal subjacente à tipificação dos crimes contra a ordem tributária: a maximização da arrecadação fiscal. Em meio à pandemia e à crise econômica dela decorrente, esse desenho de incentivos revela-se ainda mais desastroso, porque conjuga a natural queda da arrecadação tributária e a insegurança jurídico-econômica a estímulos para a sonegação tributária fraudulenta.

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[1] BUONICORE, B. T. et al. Reflexões sobre a criminalização do não recolhimento de ICMS. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 167, p. 129–147, 2020.

[2] Quanto a parâmetros para uma tese que possivelmente conjugasse a criminalização do inadimplemento de ICMS com a ordem constitucional, v. BORGES, Ademar; LEITE, Alaor. Parâmetros interpretativos para a criminalização do não recolhimento de ICMS próprio. Jota. 17. dez. 2019. Disponível em: bit.ly/3bbyXu3.

[3] Para uma análise econômica da política criminal-tributária, v. BUBNIAK, P. L. T. Análise Econômica do Direito Penal Tributário: uma crítica à política criminal brasileira. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, UFPR, Curitiba, 2017.

[4] BECKER, G. S. Crime and Punishment: An Economic Approach. Journal of Political Economy, v. 76, n. 2, p. 169–217, 1968.

[5] A título de parâmetro, recorda-se que a taxa de elucidação de homicídios no Brasil é de aproximadamente 8%: “Brasil não soluciona nem 10% dos seus homicídios”. Gazeta do Povo. 17. set. 2018. bit.ly/2YQoAcP.