Opinião e Análise

Gustavo Ferreira Ribeiro

Ivo T. Gico Jr

Apesar da crise atual, o setor aéreo brasileiro tem crescido muito nos últimos anos. Dada a elevada complexidade logística do setor e o aumento da quantidade de passageiros e bagagens, é inevitável que erros ocorram e bagagens sejam extraviadas. As situações são diversas, assim como as narrativas de cada “tragédia” pessoal, muitas vezes potencializadas em rotas internacionais. Para alguns, foram-se custosos remédios de uso diário de uma doença grave. Outros perderam anos de pesquisa armazenada no equipamento despachado. Há até quem já relatou ter seu desempenho afetado em uma maratona internacional. Foram em vão meses a fio de treinamento.
A resposta jurídica para este problema é a responsabilidade civil contratual.  Mas quando se tratam de voos internacionais, surge a questão jurídica relativa ao quantum debeatur: quanto se deve pagar? Segundo a Convenção de Varsóvia (1929) e suas atualizações, da qual o Brasil é signatário, há um limite a essa responsabilidade (tarifada). Invocando o Código de Defesa do Consumidor, por outro lado, muitos alegam que a responsabilidade deve ser ilimitada.  Qual a regra aplicável?
Do ponto de vista estritamente jurídico, trata-se de antinomia entre um tratado (Varsóvia)[1], que deve ser observado por força do art. 178 da CF, e uma lei ordinária (CDC), que implementa um princípio constitucional (art. 5º, XXXII da CF).  Como os Tribunais brasileiros não conseguem concordar na resposta, a questão será uniformizada pelo STF por meio do incidente de repercussão geral declarado no RE nº 636.331.
Se adstritos ao instrumentário tradicional dos juristas, a questão se limitará a uma discussão sobre hierarquia das normas e especificidade. Na prática, nenhum dos critérios jurídicos efetivamente dará uma resposta à pergunta.  O ordenamento é compatível com ambas as hipóteses. Na linguagem kelseniana, a moldura jurídica comporta mais de um retrato. Se o texto jurídico não é claro e uma escolha precisa ser feita pelo Tribunal, acreditamos que há outros instrumentais que podem auxiliar nessa decisão, como a Análise Econômica do Direito (AED).
Em primeiro lugar, a responsabilidade civil pode ser vista como uma forma de incentivar as pessoas a tomarem o nível ótimo de cuidado consigo e para com o próximo. Isto é, tanto a empresa aérea, quanto o consumidor podem tomar cuidados para que o dano não ocorra ou, se ocorrer, que sua extensão seja mitigada (precaução bilateral). Nesse sentido, se apenas a companhia aérea for responsável (responsabilidade ilimitada), apenas ela tomará precauções e o consumidor não terá incentivos para fazê-lo. Ele poderá decidir que não precisa tomar qualquer precaução, como carregar os remédios essenciais consigo ou não despachar bens de alto valor. Transfere-se integralmente o risco para a companhia aérea.
Por outro lado, se apenas a consumidora for responsável pelo dano (ausência de responsabilidade da companhia aérea) ou se o valor da indenização for muito pequeno, só ela terá incentivos para tomar precaução e a quantidade de extravios tende a aumentar. Em ambos os casos não se alcança o nível ótimo de precaução, ocorrendo o “paradoxo da compensação” no jargão da AED[2].  
A questão ganha em complexidade com o problema de assimetria de informação.  O passageiro sabe o que está sendo despachado. A empresa aérea não.  Logo, a empresa não tem os meios de precificar adequadamente o transporte dessa bagagem. E, no caso de extravio, é muitas vezes impossível demonstrar o que efetivamente estava na bagagem. Neste aspecto, é o consumidor quem possui uma posição de superioridade e a companhia está vulnerável.
Diante da assimetria de informação e do risco de responsabilidade ilimitada, a conduta racional da companhia, além de tomar precauções, é subir o preço de todas as passagens aéreas, como um seguro contra o risco da responsabilidade ilimitada no caso de extravio. Assim, a responsabilidade ilimitada aumenta o preço das passagens para todos os passageiros, não apenas para aqueles que carregam maiores valores ou representam maior risco. O custo é socializado. Já o benefício é privatizado e capturado apenas por esta parcela de consumidores, muitas vezes, os mais sofisticados.
A lógica juseconômica sugere que haja uma regra jurídica que incentive ambas as partes a tomarem precaução, na medida de suas possibilidades. Limitar-se-ia o dano, mas se atribuiria maior responsabilidade à empresa aérea quando, por exemplo, o passageiro tenha informado o valor da bagagem e tenha pago uma contraprestação suplementar. 
E é relevante notar que a lógica do regime de Varsóvia, com suas atualizações, funda-se nessa estrutura de incentivos em seu artigo 22.2. A responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a determinado valor por passageiro. Porém, se o passageiro, ao entregar a bagagem, preenche uma declaração especial de valor da entrega, pagando uma quantia suplementar, incrementa-se o valor da responsabilização pelo valor declarado[3]. 
Como se pode ver, a pergunta jurídica, na prática, não é consumidores versus empresas, mas qual grupo de consumidores o STF vai proteger? Os que não tomam precaução e levam valores maiores ou os menos sofisticados, que não o fazem? Quer os Ministros estejam cientes disso na hora do julgamento da repercussão geral no RE nº 636.331 ou não, é isso que, de fato, está na balança.
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[1] Sua nomenclatura não abreviada é “Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional”, cuja conclusão se deu em Varsóvia, em 12 de outubro de 1929, na Segunda Conferência Internacional de Direito Privado Aéreo. Para o Decreto de internalização, veja-se Decreto nº 20.704/1931. O regime de Varsóvia, ademais, compreende os protocolos resultantes da Conferência de Haia (1955) e, posteriormente, de revisão em Montreal (1977 e 1999). Para delimitação do tema, concentrou-se o artigo na dicotomia Convenção de Varsóvia e CDC. Não se desconhece que a problemática envolve, além disso, considerações sobre o Código Civil e o Código Brasileiro de Aeronáutica. Se fossem incluídos, ao final, recai-se na dicotomia responsabilidade limitada ou não.
[2] COOTER &amp; ULEN. Law and Economics. 6 ed. Pearson: 2016, p. 337; EPSTEIN, Beyond Foreseeability: Consequential Damages in the Law of Contract. The Journal of Legal Studies, v. 18, n. 1 (Jan., 1989), p. 120-121; MICELI, Thomas J. The Economic Approach to Law. Stanford University Press: 2004, p. 135-137.
[3] 2. No transporte de bagagem, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino. (...) 5. As disposições dos números 1 e 2 deste Artigo não se aplicarão se for provado que o dano é resultado de uma ação ou omissão do transportador ou de seus prepostos, com intenção de causar dano, ou de forma temerária e sabendo que provavelmente causaria dano, sempre que, no caso de uma ação ou omissão de um preposto, se prove também que este atuava no exercício de suas funções”. Para a origem dos primeiros cálculos, baseado em valores médios em uma amostra significativa de registros, veja-se: DRION, Limitation of Liabilities in International Air Law. Haia: Matinus Nijhoff, 1954, para. 26.

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O extravio de bagagem em voo internacional

O extravio de ideias e o RE nº 636.331