Opinião e Análise

Gustavo Ferreira Ribeiro

O recente vazamento dos dados pessoais de usuários do Facebook para uma empresa de consultoria política reviveu um debate inevitável. Quais os limites de uso dos “ciberdados” pelos provedores de aplicação na internet, entre eles o Facebook, e como regular a proteção de dados no ambiente digital?
O debate percorre o mundo. No que toca à União Europeia, o vazamento quase coincide com o início da aplicação do Regulamento Europeu Geral sobre a Proteção de Dados (2016/679, “RGPD”), previsto para ocorrer a partir de 25 de maio. O tão esperado RGPD parte da premissa de que a proteção de dados pessoais é um direito fundamental. Ao mesmo tempo, reconhece não se tratar de um direito absoluto, relativizando-o e introduzindo a lógica de análise de riscos nas obrigações que implementa. Por exemplo, a obrigação de notificação de violação de dados pessoais (vazamentos p.e.), pelo “responsável pelo tratamento” às “autoridades de controle” em até 72 horas, não engloba as situações que não resultem em riscos para os direitos das pessoas naturais (art. 33 do RGPD). 
No que concerne o Brasil, o episódio recolocou na mídia a discussão acerca de projetos brasileiros (PL 4.060/12 e PL 5.276/12 – o último já apensado ao primeiro) de proteção de dados pessoais, frutos de debates anteriores. Outras opiniões, algumas técnicas e outras políticas, manifestam a necessidade de criação de uma agência de proteção de dados no país ou mesmo que se criminalizem vazamentos. 
A confiança de que normas estatais, quanto à regulação e seus efeitos no espaço cibernético, serão “salvadoras da proteção dos dados”, entretanto, deve ser relativizada. O “direito estatal” e suas instituições são um, entre vários mecanismos de regulação. Nesta opinião, sugerimos que a fixação de correções de mercado em instrumentos de origem estatal, exclusivamente, não captura o dinamismo dos dilemas regulatórios. Inclusive, aqueles envolvendo a internet.
Voltemos aos primórdios da rede, em meados dos anos 1990, e o profícuo debate entre dois professores nos EUA. O juiz Easterbrook, professor da Universidade de Chicago, colocava sobre a mesa a discussão se o ciberespaço mereceria o estudo como uma disciplina à parte. Com a remissão ao “Direito dos Cavalos” (Cyberspace and the Law of the Horse, 1996), postulava o autor que não se teria um melhor conhecimento sobre o instituto da responsabilidade civil ao se estudar um número infindável de casos envolvendo as peculiaridades de acidentes com cavalos. Relembrava a importância de se concentrar a formação dos juristas em matérias que pudessem iluminar de forma mais ampla o conhecimento, como a Análise Econômica do Direito (AED). Apresentava Easterbrook, ademais, seu ceticismo, naquele momento, sobre a capacidade de juristas transporem a forma de ver e regular o mundo para o contexto virtual. O movimento Direito e Ciência da Computação estaria fadado ao fracasso!
Foi Lessig, da Universidade de Harvard, quem, parcialmente, dissentiu. Admitia que não estava a defender uma abordagem do “Direito dos Cavalos”, mas procurava chamar atenção para as particularidades do mundo virtual, então em construção. Nesse sentido, o “Direito do Ciberespaço” poderia contribuir ou ensinar algo, como o título de seu artigo também indicava (The Law of the Horse: What Cyberlaw Might Teach, 1999).
Lessig não questionava a importância do uso da AED sobre o tema. A metodologia desenvolvida por Lessig era, inclusive, típica da AED: como pensar um problema jurídico como um problema regulatório, de natureza juseconômica. Porém, com os ajustes necessários quando da transposição da regulação do mundo físico para as especificidades do virtual. 
Com esse intuito, Lessig identificava quatro modalidades de regulação que, operando de forma interpolada, podem incentivar ou desestimular comportamentos de indivíduos e organizações: (i) as próprias normas estatais; (ii) as normas sociais; (iii) os mercados; e (iv) a arquitetura ou design. A última, no caso da internet, definida não apenas por suas tecnicalidades, mas também o seu desenho social e econômico e a forma como seus códigos que lhe implementam podem ser alterados. 
Ilustremos. Ao se pensar nas quatro modalidades, as normas jurídicas estatais buscam condicionar as pessoas e empresas a se comportarem de certa maneira, com a ameaça da aplicação da sanção, por exemplo, em face do comportamento desviante. A conduta prevista em tipo penal ou norma administrativa punitiva, nos casos mais tradicionais, submetem seus autores a sanções penais e multas. Normas sociais também afetam comportamento. A maneira como as pessoas se vestem e se expressam em seu cotidiano são condicionadas pelo ambiente. Com uma diferença. Ao invés de partirem de um modelo centralizado de incentivo ou punição (como as normas estatais e seu aparato), são aplicadas de forma descentralizada, pela comunidade. Mercados também regulam, seguia o autor. Pelo preço. Pessoas seguem, de forma geral, as regras de oferta e demanda do mercado. Embora, adicionemos, nem sempre de forma racional, de acordo com insights recentes trazidos pelos estudos behavioristas. Por fim, a arquitetura regula. No mundo físico, a distância entre duas comunidades regula a forma como vizinhanças interagem. A largura das avenidas pode limitar o número de protestos em uma cidade, para que se exemplifique.
O mesmo conjunto regulatório deve ser percebido e explicitado no contexto virtual. É o que se procura reforçar, ao se pensar o caso Facebook e similares. 
<a name="_GoBack"></a> Se tomarmos como ponto de partida apenas a jurisdição estado-unidense, para que se simplifique, suas leis regulam, no sentido mais óbvio. Embora não estejam claros o quão as empresas vêm se ajustando, ex-ante, aos standards de proteção devidos, passado o evento do vazamento de dados, vê-se o potencial poder de coerção da Comissão Federal de Comércio (FTC). Responsável pela proteção dos consumidores e estímulo à livre concorrência nos EUA, poderá aplicar, ex-post, multas bilionárias, após as investigações, processos e confirmação das violações das normas. Mas as condutas sociais também regulam, ainda que a maior parte das pessoas não gaste seu tempo, ex-ante, lendo infindáveis e complexos termos de usos dos aplicativos. Basta atentarmos para os movimentos que, no extremo, conclamam os participantes a “apagar o Facebook”. Sinalizam à empresa seu poder regulatório e a potencial de perda de usuários. A debandada em massa se torna uma ameaça crível. Além disso, o sistema de preços do mercado, e as sucessivas desvalorizações das ações da empresa nos pregões que se seguiram, também estão, a posteriori, regulando sua conduta. Colocam enorme pressão dos investidores sobre os administradores das empresas acerca da condução de seus negócios. Por fim, e ligado de forma dinâmica aos pontos anteriores, a arquitetura digital da rede, com instantânea propagação de informações e suas “linhas de código” também regulam. Impulsionado por leis, condutas sociais e/ou o sistema de preços de mercado, poderemos assistir ao desencadeamento de uma nova geração de linhas de código que implementem alterações significativas acerca de proteção de dados pessoais de usuários. Seja no que toca à forma de segurança de dados, uso por terceiras partes, consentimento, apresentação das informações aos usuários, entre outras.
Parece superada a visão de que, sendo o acesso às plataformas sociais “gratuito”, podem os provedores de aplicação utilizarem os dados captados da maneira como quiser. A questão naturalmente é como achar, senão um ponto ótimo, um ponto de equilíbrio na regulação. Perde-se a riqueza do mosaico de opções, os benefícios e custos de cada modalidade, quando do excessivo foco, e confiança, na norma estatal – seja ela a norte-americana, ou as futuras aplicações da norma europeia (RGPD) e brasileira em seus respectivos contextos. O episódio do Facebook é ilustrativo de como se pensar o dilema regulatório de forma múltipla, quanto às modalidades, e específica, do ponto de vista da arquitetura digital.

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Não são apenas normas estatais que afetam o comportamento do Facebook

Dilemas regulatórios digitais