Opinião e Análise

Cristiano Carvalho

Demétrio Giannakos

Por qual motivo devemos respeitar as regras? Essa questão é examinada na obra Playing By the Rules. Para o autor, os tomadores de decisão que seguem as regras mesmo quando outros resultados são preferíveis, permitem que os afetados prevejam antecipadamente qual será a possível decisão<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Pela ótica da Análise Econômica do Direito (AED), regras fixam preços para as ações dos indivíduos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, e ao se pretender suplantar a aplicação de uma regra em um caso específico, é necessário aferir se essa inobservância não criará externalidades negativas, modificando os preços relativos para todos os demais destinatários da regra. É que veremos no presente artigo.
No âmbito do Direito, essa concepção é incorporada na forma de segurança jurídica, no aspecto de trazer ao cidadão uma ideia de proteção da confiança. A concepção de segurança e previsibilidade nas decisões jurídicas e regras é crucial ao desenvolvimento social e econômico de qualquer sociedade. Por exemplo, decisões do cotidiano são tomadas com base na forma como os tribunais decidem.
No caso em apreço, o debate versará sobre o entendimento de alguns municípios sobre a possibilidade de cobrar o imposto <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/itbi">ITBI</a> quando determinado bem imóvel é integralizado em capital social de pessoa jurídica, nos termos do <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">art. 156, § 2º, inciso I, da CF</a>. O texto constitucional adota um estilo detalhista e minudente justamente para excluir qualquer margem de apreciação por parte do intérprete.
No entanto, já se pode observar divergência doutrinária. Por exemplo, há quem sustente, como o professor Kiyoshi Harada, que “a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do §2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Dito de outro modo, a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte do inciso. Dessa forma, reitera-se: a imunidade prevista na primeira parte do dispositivo é incondicional, desde que referente a bens para integralização de capital social. Esta posição não deve ser desprezada, haja vista que no julgamento do Tema 796 pelo Supremo Tribunal Federal, o relator, ministro Alexandre de Moraes, adotou o mesmo argumento.
No entanto, alguns municípios fazem interpretação discricionária sobre o referido art. 156, § 2º, inciso I, da CF. O resultado dessa interpretação seria a suposta possibilidade de o fisco municipal avaliar o imóvel integralizado pelo o que ele próprio entender ser o seu valor venal.
Façamos uma simulação exemplificativa: João adquiriu imóvel rural em 2020, tendo sido feito o recolhimento do ITBI no momento da compra e venda. No ano fiscal subsequente, João declara em seu Imposto de Renda que referido imóvel possui o valor de R$ 2 milhões, valor este pago na Escritura de Compra e Venda à época.
Em 2024, João cria uma pessoa jurídica cujo o objetivo é a administração do seu patrimônio e, em ato contínuo, realiza a integralização do imóvel pelo valor descrito em seu imposto de renda, qual seja, R$ 2 milhões. Visando o registro da alteração de propriedade do registro de imóveis, João requer ao município local certidão de imunidade de ITBI, justamente pela aplicação da primeira parte do inciso I, do §2º do art. 156 da CF.
O município, por sua vez, concede a imunidade sobre o valor integralizado (R$ 2 milhões, porém, avalia, discricionariamente, pelo valor de R$ 3 milhões, sem a possibilidade de contraditório. Com isso, tributa o contribuinte sobre o valor que entende excedente (R$ 1 milhão). O que chama a atenção é que o fundamento para tal ato é o próprio Tema 796 pelo STF.
Porém, há luz no fim do túnel. A 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), por exemplo, possui posicionamento exemplar quanto ao tema, justamente demonstrando que o Tema 796 pelo STF (originário do Recurso Extraordinário 796.376/SC), bem da verdade, versa sobre caso de diferença destinada à reserva de capital, por expressa previsão contratual. Dito de outro modo, em momento algum do STF permitiu ou ventilou a possibilidade de o fisco municipal avaliar o bem integralizado de forma discricionária. Tal conclusão fica clara no acórdão judicial<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), por sua vez, ao analisar o caso, fez distinção fundamental entre a primeira parte do art. 156, §2º, inciso I e a sua segunda parte, conforme trecho extraído: “Em suma, o art. 156, § 2º, I, comporta duas hipóteses de imunidade. A primeira, diz com a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, em que a imunidade é incondicionada e é a esta que se refere a hipótese concreta. A segunda, que não se ajusta ao caso dos autos, corresponde à transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, caso em que há o condicionamento quanto à atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
A 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) apresentou posicionamento importante, justamente no sentido de que no caso objeto da Repercussão Geral, o valor dos imóveis excedia às quotas subscritas, destinando-se a formação de reserva de capital, extrapolando, no entendimento defendido pelo STF, ao disposto no citado artigo 156, §2º, da Constituição Federal. Contudo, no caso analisado pelo TJMG, o imóvel fora inteiramente destinado ao pagamento da integralização do capital social subscrito, atraindo, por certo, a imunidade tributária. As hipóteses excepcionais não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Diante dessas circunstâncias, pode-se verificar que essa interpretação extensiva praticada por alguns municípios vem criando jurisprudência sem trazer segurança jurídica ao tema. Com a adesão dessa temática por parte de alguns julgadores, o fisco acaba sentindo-se incentivado a insistir com tal interpretação legislativa, mesmo não sendo recepcionada pela maioria dos tribunais e, muito menos, pela legislação vigente.
Além do aspecto jurídico, os incentivos atingem a tomada de decisão por parte dos agentes, especialmente do fisco. Esse, visualizando a insegurança jurídica criada pelos tribunais, poderá pautar seu comportamento de forma a continuar insistindo nessa interpretação equivocada da lei, notadamente porque não há custo para o tomador de decisão.
Enquanto o contribuinte corre o risco de sucumbir e arcar com o ônus processual, o(a) secretário(a) da fazenda que orientar sua secretaria a insistir no erro não terá nenhuma repercussão se criar um passivo para o respectivo município. Esse exemplo explica muito a presença do Estado em mais da metade dos litígios que tramitam no país, criando incentivos perversos para que as autoridades fiscais sigam comportando-se de forma prejudicial ao sistema jurídico e ao ambiente de negócios.
Portanto, seja por razões de eficiência econômica, seja por estrito cumprimento da Constituição, não há como defender uma posição que não encontra amparo legal e ainda por cima estimula a litigiosidade em nosso sistema jurídico.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> SCHAUER, Frederick. As regras do jogo: uma análise filosófica do processo de tomada de decisão baseado em regras no direito e na vida / tradutor: Rafael Gomiero Pitte. Londrina, PR: Thoth, 2024, p. 149/150.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CARVALHO, Cristiano. Teoria da Decisão Tributária. São Paulo: Saraiva, 2018, 2ª ed, p. 307.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> HARADA, Kiyoshi. ITBI: Doutrina e Prática. 3 ed. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021, p. 143.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> TJMS. Agravo de Instrumento n. 1423450-74.2023.8.12.0000,  São Gabriel do Oeste,  5ª Câmara Cível, Relator (a):  Des. Vilson Bertelli, j: 11/03/2024, p:  13/03/2024.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Apelação Cível, Nº 50826104320218210001, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em: 11-12-2023.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> TJMG -  Agravo de Instrumento-Cv  1.0000.21.202186-9/001, Relator(a): Des.(a) Carlos Levenhagen , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/05/2022, publicação da súmula em 26/05/2022.

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JOTA

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