Opinião e Análise

Cristiano Aguiar de Oliveira

David Card, Joshua Angrist e Guido Imbens foram agraciados com o <a href="https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/2021/press-release/">Prêmio Nobel de Economia de 2021</a>. O primeiro por suas contribuições empíricas à Economia do Trabalho, área que estuda o mercado de trabalho, e os dois últimos por suas contribuições à análise de relações causais.
Em comum a esses pesquisadores está o desenvolvimento e a utilização de um arcabouço metodológico para realizar inferências causais, que para muitos representou uma revolução de credibilidade em estudos empíricos que atingiu tanto a Economia quanto as demais áreas do conhecimento. O que talvez muitas pessoas não saibam é que não somente o Direito foi atingido por essa revolução, mas também foi parte fundamental desse processo de transformação da análise empírica.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias"><img class="aligncenter cta-tributos size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-tributos.png" width="688" height="688" /></a>
Em todas as áreas da ciência a compreensão dos fenômenos sociais ou da natureza passa quase sempre por saber o que causa o quê. Mesmo quem não trabalha com ciência faz inferências a respeito de causalidade rotineiramente, afinal todo mundo “acha” alguma coisa, ou seja, atribui causas para determinados desfechos. Entretanto, quem trabalha com ciência e, portanto, com os seus princípios e métodos estabelecidos para buscar a verdade, tem um desafio muito difícil de superar: o problema de inferência causal envolve um cenário contrafactual que nunca pode ser observado!
Por exemplo, mesmo quando se tem um indivíduo com dor de cabeça que toma uma aspirina e tem como resultado uma redução dessa dor, em princípio, não é possível atribuir ao medicamento o efeito observado. Por quê? Porque não se observa como seria caso ele não tivesse tomado a medicação. Em outras palavras, o efeito do tratamento é a diferença entre o resultado tomando o remédio e não o tomando, mas este último cenário, que se costuma denominar contrafactual, não é e nunca será observado.
Uma estratégia para resolver esse problema e obter a identificação dos efeitos de tratamentos e intervenções é fazer experimentos em grupos, os chamados experimentos controlados. O procedimento básico consiste em separar dois grupos com características muito semelhantes de forma aleatória em que um recebe o medicamento (grupo tratado) e o outro não (grupo de controle) e se faz uma avaliação do efeito do tratamento em termos médios. Um exemplo que ilustra esse tipo de procedimento é a avaliação da eficácia das vacinas. Ela é resultado da diferença de taxas de contaminação entre o grupo de vacinados (tratados) e não vacinados (controle).
Todavia, em muitas áreas do conhecimento, é muito difícil realizar experimentos controlados. No Direito, por exemplo, não é possível avaliar a eficácia de uma lei através de um experimento controlado porque existem limitações legais para se fazer isso. O artigo 5º da Constituição Federal não permite que se aplique uma lei para um grupo de brasileiros e para outro não, afinal “somos todos iguais perante a lei”. Mas, então, como leis poderiam ser avaliadas? É justamente nessa lacuna metodológica que surge a contribuição dos pesquisadores que foram agraciados com o Prêmio Nobel de Economia de 2021.
Eles desenvolveram e continuam desenvolvendo métodos que permitem obter relações causais a partir de dados que não são originados de experimentos controlados, mas de dados que o pesquisador não tem a capacidade de manipular, chamados de dados observacionais. Contudo, para obter relações de causalidade a partir desse tipo de dado, assim como em um experimento controlado, é necessário ter um delineamento com tratamento e grupos de controle e tratados bem definidos.
Nesse contexto, Joshua Angrist se especializou em uma metodologia conhecida como variáveis instrumentais. A ideia do método é obter ou resgatar a aleatoriedade que normalmente existe em experimentos controlados a partir de uma outra variável (chamada instrumento) que tem preferencialmente uma origem aleatória. Em um de seus artigos mais conhecidos em parceria com outro economista, infelizmente já falecido, Alan Krueger, eles utilizam uma ideia muito inteligente para poder avaliar os impactos da escolaridade nos rendimentos dos indivíduos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Antes de expor a ideia dos autores, é importante salientar que um dos problemas para identificar essa relação é que os anos de escolaridade, em princípio, não são definidos de forma totalmente aleatória e potencialmente dependem de características que não são observadas, tais como a inteligência ou a renda da família, e essas características também afetam os rendimentos. Esse problema (endogeneidade) pode ser resolvido se houver uma fonte de variação exógena que esteja relacionada com a escolaridade dos indivíduos, mas que não tenha uma relação direta com os seus rendimentos.
Então, Angrist e Krueger utilizaram uma peculiaridade no sistema educacional dos Estados Unidos. Assim como no Brasil e em outros países, uma criança entra no ensino fundamental com base em seu aniversário. Por muito tempo, nos Estados Unidos esse corte foi no final de dezembro. De forma que se as crianças nasceram em ou antes de 31 de dezembro, elas eram designadas para a primeira série. Entretanto, se o aniversário delas fosse no dia 1º de janeiro ou depois, elas eram matriculadas no jardim de infância. Combinado com essas regras, vários estados americanos possuíam leis que estabeleciam a compulsoriedade de permanência na escola até os 16 anos de idade. Desse modo, de acordo com sua data de nascimento (definida de forma aleatória) um indivíduo poderia ter mais ou menos anos de escolaridade ao chegar na idade definida pela lei e isso não possui qualquer relação com seus rendimentos. Assim, a partir dessa metodologia, os autores estimaram um retorno de 8,9% nos rendimentos por cada ano adicional de estudo.
Essa mesma estratégia empírica também foi utilizada mais tarde por Lance Lochner e Enrico Moretti para responder uma pergunta recorrente no Direito Penal: é possível reduzir as taxas de criminalidade aumentando a escolaridade de potenciais criminosos?<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Nesse caso, mais uma vez o uso de variáveis instrumentais se faz necessário porque também existem problemas de endogeneidade na relação entre escolaridade e criminalidade. Existe uma série de características não observadas que afetam as decisões de escolaridade e que são provavelmente correlacionadas com a decisão de se envolver no crime, como o uso de drogas, por exemplo. Então, utilizando mudanças nas leis estaduais de compulsoriedade escolar ao longo do tempo como instrumento para os anos de escolaridade, os autores estimaram que cada ano adicional de escolaridade reduziria em 0,1 e 0,37 pontos percentuais a probabilidade de encarceramento de brancos e negros, respectivamente.
Uma outra linha de aplicação bastante interessante do uso de variáveis instrumentais no Direito é a que utiliza a atribuição aleatória de juízes aos réus como instrumento. Na década de 1930, Frederick Gaudet, George Harris e Charles St. John observaram, pesquisando a jurisprudência americana, que processos iguais ou semelhantes poderiam ter desfechos distintos de acordo com o juiz atribuído ao processo<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Em outras palavras, a probabilidade de haver uma punição depende, entre outras coisas, de um componente aleatório (juiz sorteado).
Em uma aplicação interessante desse instrumento, Anna Aizer e Joseph Doyle Jr. avaliam os efeitos causais do encarceramento juvenil na conclusão do ensino médio e na reincidência criminal de adultos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Os autores estimaram que o encarceramento de um jovem seria capaz de reduzir as chances de ele concluir o ensino médio em 12,5 pontos percentuais e de aumentar as suas chances de encarceramento na idade adulta em 23,4 pontos percentuais.
Por sua vez, David Card se notabilizou pelo uso de experimentos naturais em conjunto com o método de diferença nas diferenças em seus estudos. Para quem não é familiar com o conceito e o método, é possível dizer que um experimento natural ocorre quando a seleção entre quem fará parte do grupo de tratado e controle não é totalmente aleatória, mas um evento realiza a seleção dos grupos sem que haja qualquer participação do pesquisador.
Esses eventos permitem a aplicação do método de diferença nas diferenças que consiste na comparação entre o antes e depois do tratamento utilizando a trajetória do grupo de controle como um contrafactual para o grupo tratado. Card aplicou essa metodologia em vários temas relacionados ao mercado de trabalho, tais como salário mínimo, efeitos de programas de treinamento de trabalhadores, imigração, retornos de escolaridade etc.
Um de seus artigos mais conhecidos é o que aproveita o experimento natural gerado pela famosa declaração de Fidel Castro em 20 de abril de 1980 de que os cubanos que desejassem emigrar para os Estados Unidos estavam livres para sair a partir do porto de Mariel<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. De forma que, entre maio e setembro de 1980, cerca de 125 mil imigrantes cubanos chegaram a Miami através de barcos fretados. Isso representou um aumento de 7% na oferta de trabalho na cidade em um curto período, mas um choque ainda maior na oferta de trabalho com baixa qualificação, considerando que a maioria dos imigrantes não possuía qualquer qualificação profissional.
Então, Card construiu um grupo de controle com informações de quatro áreas metropolitanas semelhantes: Atlanta, Los Angeles, Houston e Tampa. Essas cidades foram escolhidas por apresentarem padrões de crescimento econômico e composição racial semelhantes aos de Miami (cidade tratada). O trabalho de Card chegou a duas conclusões: (i) o choque econômico de Mariel para o mercado de trabalho de Miami não afetou negativamente os salários ou a empregabilidade dos trabalhadores que antes residiam na cidade; (ii) a chegada dos cubanos também não afetou os salários dos trabalhadores pouco qualificados. O estudo teve uma grande repercussão por trazer evidências que contrariavam o senso comum na época.
Embora não tenha sido o criador do método de diferença nas diferenças, certamente os artigos de David Card contribuíram para popularizá-lo. O método é provavelmente o mais utilizado para se obter relações causais e avaliar políticas públicas até os dias atuais. Para se ter uma ideia, uma busca no Google Acadêmico pelo método retorna cerca de 56,2 mil resultados. Ademais, vale ressaltar que muitos dos experimentos naturais necessários à aplicação do método deriva de leis. No Direito Penal, um exemplo bem interessante que utiliza o experimento natural gerado por uma lei é o estudo de Daniel Kessler e Steven D. Levitt, que buscam responder à seguinte pergunta: aumentar o tempo de encarceramento é capaz de reduzir a criminalidade?
Para respondê-la, os autores utilizaram o experimento natural gerado pela aprovação e aplicação da Proposição 8 na Califórnia em 1982<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Ela estabeleceu um aumento da severidade da punição para criminosos reincidentes nos crimes de homicídio, estupro, roubo, tentativa de homicídio com arma de fogo e roubo de residência com mais cinco anos para cada um desses crimes se o crime anterior tivesse sido violento e um ano se o crime anterior não tivesse sido violento. Ao mesmo tempo permaneceram inalteradas as punições para tentativa de homicídio sem o uso de arma de fogo, furto de veículos e furtos.
A possibilidade de dividir os crimes em dois grupos permitiu aos autores comparar o antes e depois e utilizar a trajetória dos crimes que não sofreram alterações na punição como um grupo de controle para obter a trajetória contrafactual dos crimes que sofreram alterações na punição (tratados).
Os seus resultados mostraram que os crimes incluídos na proposição foram reduzidos em cerca de 10% já no primeiro ano da lei e algo entre 20% e 40% nos anos posteriores. Os autores atribuem a queda inicial à existência de efeitos de dissuasão, afinal mudança na severidade da punição ainda não estava sendo aplicada aos criminosos reincidentes. Ou seja, a perspectiva de uma punição mais severa já teria sido capaz de reduzir a criminalidade. Com o passar do tempo e aplicação da nova regra os impactos foram aumentados porque, segundo os autores, os efeitos de incapacitação foram adicionados aos efeitos de dissuasão. Muitos criminosos contumazes ficaram incapacitados de praticar novos crimes por estarem cumprindo penas mais longas.
As contribuições de Guido Imbens seguem uma linha um pouco diferente dos outros pesquisadores ganhadores do prêmio. Ele é mais “econometrista” no sentido de ter contribuído mais desenvolvendo métodos do que os aplicando. Uma de suas contribuições mais relevantes foi popularizar e ajudar a desenvolver o método de regressões com descontinuidade<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, considerado por muitos como o mais robusto entre os métodos para se obter relações causais a partir de dados observacionais.
O método consiste em obter uma fonte de variação exógena para seleção do tratamento baseado em um ponto de corte que seja capaz de separar os grupos de controle e tratados.
Um exemplo de ponto de corte poderia ser a maioridade penal. Menores de 18 anos cometem infrações que são julgadas à luz do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), enquanto maiores de 18 anos são julgados de acordo com o Código Penal. Ou seja, nas proximidades do ponto de corte a única diferença para quem pratica um crime é a severidade da punição, que se altera de forma descontínua a partir da maioridade penal. Essa diferença na severidade da punição é mais evidente nos crimes considerados hediondos por nossa legislação, tais como homicídios e tráfico de drogas. Então, para não ficar somente em exemplos aplicados aos Estados Unidos, cabe citar o estudo em que eu e Daniel Montolio<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> utilizamos a descontinuidade que ocorre na severidade da punição com a passagem para a maior idade no Brasil para separar um grupo de controle sujeito a uma punição menos severa (menores de idade) e um grupo de tratados sujeito a uma punição mais severa (maiores de idade). Assim, através de regressões com descontinuidade estimamos que o aumento da severidade das punições gerado pelo Código Penal seria capaz de reduzir em 9% o número de crimes relacionados ao tráfico de drogas e de reduzir os homicídios e tentativas de homicídios em 37% no estado do Rio de Janeiro.
Enfim, as possibilidades de aplicações dos métodos de inferência causal desenvolvidos e popularizados por esses pesquisadores que acabam de ganhar o Nobel de Economia são muito vastas e tenho a certeza de que o Direito seguirá tendo uma relação estreita com esses métodos, pois, como há muito tempo já se sabe, leis costumam gerar bons experimentos naturais, e alguns procedimentos processuais são capazes de fornecer boas fontes de aleatoriedade, como por exemplo, o citado sorteio de juízes.
Por fim, concluo que aplicações (evidências empíricas) utilizando esses métodos em temas do Direito brasileiro são fundamentais não somente como uma forma de maior aproximação com a realidade, mas principalmente para fornecer insumos a avaliações de custo-benefício tanto de leis quanto de políticas públicas, um dos pilares da Análise Econômica do Direito, que infelizmente, apesar de seu crescimento recente, ainda é um tipo de análise pouco aplicada no Brasil.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
<hr />
&nbsp;
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ANGRIST, J. D.; KRUEGER, A. B. Does Compulsory School Attendance Affect Schooling and Earnings? The Quarterly Journal of Economics, v. 106, n. 4, p. 979–1014, 1991.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> LOCHNER, L.; MORETTI, E. The Effect of Education on Crime: Evidence from Prison Inmates, Arrests, and Self-Reports. American Economic Review, v. 94, n. 1, p. 155–189, 2004.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> J., F.; GAUDET; HARRIS, G. S.; ST. JOHN, C. W. Individual Differences in the Sentencing Tendencies of Judges. Journal of Criminal Law and Criminology (1931-1951), v. 23, n. 5, p. 811–818, 1933.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> AIZER, A.; DOYLE, J. J., Jr. Juvenile Incarceration, Human Capital, and Future Crime: Evidence from Randomly Assigned Judges *. The Quarterly Journal of Economics, v. 130, n. 2, p. 759–803, 2015.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> CARD, D. The Impact of the Mariel Boatlift on the Miami Labor Market. ILR Review, v. 43, n. 2, p. 245–257, 1990.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> KESSLER, D. P.; LEVITT., S.D. Using Sentence Enhancements to Distinguish between Deterrence and Incapacitation.” Journal of Law and Economics, 42(1), p. 343-363, 1999.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> IMBENS, G. W.; LEMIEUX, T. Regression discontinuity designs: A guide to practice. Journal of Econometrics, The regression discontinuity design: Theory and applications., v. 142, n. 2, p. 615–635, 2008.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> MONTOLIO D.; OLIVEIRA, C. Law incentives for juvenile recruiting by drug trafficking gangs: empirical evidence from Rio de Janeiro, Working Papers 2020/10, Institut d'Economia de Barcelona (IEB), 2020.

David Card, Joshua Angrist e Guido Imbens

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Como leis poderiam ser avaliadas? É aí que que surge a contribuição de David Card, Joshua Angrist e Guido Imbens

O Direito e a revolução de credibilidade laureada com o Nobel de Economia

Como leis poderiam ser avaliadas? Eis a contribuição de David Card, Joshua Angrist e Guido Imbens, laureados com o Nobel de Economia