Opinião e Análise

Luciano Benetti Timm

Leonardo Maciel Benedete

Costuma-se dizer que crises são oportunidades para mudança. E certamente a crise sanitária do Covid-19 trouxe uma oportunidade para o Poder Judiciário se reinventar; não apenas no Poder Judiciário, diga-se de passagem, pois no campo do comércio eletrônico, vivemos “5 anos em 5 meses” nas palavras de Renato Meirelles do Instituto Locomotiva.
A verdade é que, do ponto de vista de Análise Econômica do Direito (AED) e do pragmatismo jurídico (onde “consequências importam”), o inadequado desenho institucional da prestação jurisdicional, a inafastabilidade da jurisdição pensada em termos estritamente dogmáticos e desenho de incentivos errados como o recolhimento de custas quase que integralmente na distribuição da ação, a realização de audiência de conciliação antes de sanada a assimetria informacional entre as partes, a concessão irrefletida de assistência judiciária gratuita<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e o excessivo uso de um bem comum<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e a lentidão da resposta judicial fazem com que o lento, ineficaz e caro Poder Judiciário brasileiro estava, há décadas, em crise<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Nesse sentido, o que se verifica é que o judiciário brasileiro  encontra-se em um cenário de tragédia dos baldios<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, incapaz de dar uma resposta judicial em um prazo adequado ou de proporcionar um grau adequado de previsibilidade da resposta jurisdicional, haja vista a pluralidade da jurisprudência nacional, o que enfraquece o enforcement das obrigações e gera um mau ambiente de negócios no país, com a excessiva necessidade de garantias, um subdimensionamento das ofertas, aumento dos custos de transação e alocação ineficiente de recursos no acautelamento privado das obrigações.
Todavia, diante da revolução digital do final do último século, que já impactou de forma significativa o mercado da advocacia<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>-<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> –, a magistratura e o Poder Judiciário estão iniciando um processo de profunda transformação que foi acelerado em 2020 e com mudanças estruturais relevantes.
Nesse diapasão, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está trabalhando para democratização do acesso à justiça e digitalização do Poder Judiciário, de forma a transformá-lo de um local aonde se vai para obter uma decisão em um serviço à disposição dos jurisdicionados. Tanto é que, em 10/09/2020, na cerimônia de posse, o ministro Luiz Fux, ao assumir a presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) para o biênio 20/22, destacou que o incentivo ao acesso à justiça digital seria um dos cinco principais eixos de sua atuação enquanto presidente do CNJ e do STF.
Segundo o ministro, “as inovações tecnológicas entrarão em cena, para a transformação revolucionária da prestação jurisdicional”, de forma que o Supremo deverá se tornar “a primeira corte constitucional do mundo 100% digital”, deverão ser criados juízos 100% digitais, com todos os atos processuais realizados eletrônica e remotamente, “com os juízes acessíveis aos jurisdicionados, sem a necessidade de estrutura física” e os fóruns deixarão “de ser espaços físicos para se tornar serviços prestados online”.
Assim, o CNJ vem editando uma série de resoluções para modernizar a prestação jurisdicional, em consonância à pauta estabelecida por seu Presidente as quais podem ser qualificadas como revolucionárias.
Com efeito, a Resolução CNJ nº 345<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, de 09 de outubro de 2020, autorizou a criação de juízos 100% digitais cuja escolha pela parte é facultativa e ocorrerá no momento da distribuição da ação, conforme art. 3º, caput<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, da Resolução, com a possibilidade de impugnação imotivada pela parte contrária, até a sua primeira manifestação nos autos – salvo no processo do trabalho, no qual essa oposição deverá ser deduzida em até 5 dias úteis do recebimento da primeira notificação – e, havendo recusa das partes à adoção do “Juízo 100% Digital”, o magistrado poderá propor às partes a realização de atos processuais isolados de forma digital.
Ainda, é facultado ao próprio magistrado instar as partes a manifestarem o interesse na adoção do “Juízo 100% Digital”, ainda que em relação a processos anteriores à entrada em vigor desta Resolução, importando o silêncio, após duas intimações, aceitação tácita, conforme art. 3º, §4º<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Por fim, as partes poderão, a qualquer tempo, celebrar negócio jurídico processual, nos termos do art. 190 do CPC, para a escolha do “Juízo 100% Digital” ou para, ausente esta opção, a realização de atos processuais isolados de forma digital.</blockquote>
As partes poderão se retratar dessa escolha, por uma única vez, até a prolação da sentença – o que não ensejará, em hipótese alguma, em mudança do juízo natural do feito, sedo que todos os atos processuais já praticados serão preservados.
Outrossim, é garantida a livre distribuição dos processos na adoção do Juízo 100% Digital, que poderá ser adotado de modo a abranger ou não todas as unidades jurisdicionais de mesma competência territorial e material, sendo que, na hipótese de não abranger todas as unidades jurisdicionais de mesma competência territorial e material, a escolha pelo Juízo 100% Digital será ineficaz quando o processo for distribuído para juízo em que este ainda não tiver sido contemplado.
Nestes juízos digitais, todos os atos processuais serão praticados exclusivamente por meio eletrônico, sem prejuízo de eventuais produções de prova cuja realização presencial seja imprescindível ou utilização de serviços presenciais prestados por outros órgãos do Tribunal, pelos juízos digitais.
Para viabilizar a utilização dos juízos digitais e em atenção aos arts. 193 e 246, V, do Código de Processo Civil, a Resolução prevê que, no ato do ajuizamento do feito, a parte e seu advogado deverão fornecer endereço eletrônico e linha telefônica móvel celular, sendo admitida, a partir daí, a citação, a notificação e a intimação por qualquer meio eletrônico.
O “Juízo 100% Digital” deverá prestar atendimento remoto durante o horário de atendimento ao público por telefone, por e-mail, por vídeo chamadas, por aplicativos digitais ou por outros meios de comunicação que venham a ser definidos pelo tribunal, inclusive por intermédio do “Balcão Virtual”.
O Balcão Virtual supramencionado foi instituindo mediante a Resolução CNJ nº 372<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, de 12 de fevereiro de 2021, que estabeleceu o dever aos Tribunais de, em até 30 dias da publicação da referida Resolução, instalar e disponibilizar durante todo o horário de atendimento ao público, em seus websites, ferramenta de videoconferência – ou ferramenta assíncrona, nas localidades com infraestrutura precária – que permita imediato contato com o setor de atendimento de cada unidade judiciária.
Outrossim, ainda em 2020, o CNJ fomentou os métodos consensuais de resolução de conflitos, ao estabelecer, na Resolução CNJ nº 345<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, de 02 de dezembro de 2020, o dever de os Tribunais disponibilizarem, em até 18 meses após a publicação da Resolução, sistema informatizado para a resolução de conflitos via conciliação e mediação, com troca de mensagens síncronas e assíncronas pelas partes. Aqui, imagina-se que o Acordo de Cooperação Técnica entre CNJ e Ministério da Justiça para uso da plataforma do consumidor.gov.br possa desempenhar importante papel para os Tribunais de Justiça.
Ademais, a Resolução CNJ nº 385<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>, de 06 de abril de 2021, dispôs sobre a criação dos “Núcleos de Justiça 4.0”, Núcleos especializados em razão de uma mesma matéria e com competência sobre toda a área territorial situada dentro dos limites da jurisdição do tribunal, que deverá definir a estrutura de funcionamento de cada um dos Núcleos, respeitado o número mínimo de três magistrados, que poderão ser designados de forma exclusiva ou cumulativa à atuação na unidade de lotação original.
Neste sentido, será facultado à parte autora, quando da distribuição da ação, a opção pelo “Núcleo de Justiça 4.0”, que conhecerá do litígio caso não haja oposição pela parte ré na primeira manifestação desta nos autos, hipótese em que será considerado celebrado um negócio jurídico processual de eleição de foro. Em havendo oposição, o processo será remetido ao juízo físico competente.
Ainda, os tribunais deverão avaliar periodicamente a quantidade de processos distribuídos para cada juiz do “Núcleo de Justiça 4.0” e a de processos distribuídos para cada unidade jurisdicional física, a fim de aferir a necessidade de transformação de unidades físicas em núcleos, de modo a propiciar aumento da movimentação processual para patamar superior.
A Resolução CNJ nº 385 está em linha com os recentes movimentos do órgão para a modernização e digitalização da Justiça, relativizando o antigo princípio do juízo natural em prol da qualidade e da eficiência da prestação jurisdicional, em que pese trate-se de permissão ainda tímida, haja vista a facultatividade da opção pelo Núcleo de Justiça 4.0, e a relativização do princípio do juiz natural apenas no que cabe às regras de competência territorial, relativa, disponível e cuja eleição pelas partes já era possível, nos termos do art. 190, CPC/15.
A possibilidade de eleição, pelas partes, de um juízo digital e especializado, em detrimento do juízo físico territorialmente competente para a conhecer do litígio, com a consequente regionalização/estadualização da competência territorial, permite a distribuição equitativa dos acervos de processos entre as varas judiciais, ganhos de qualidade da decisão judicial em razão da especialização, ganhos de escala atrelados à digitalização das demandas judiciais e reduz os custos de transação decorrentes da incerteza e pluralidade da resposta judicial, fatores atrelados ao excesso de litigância no Brasil.
Todavia, ainda há espaços para melhora. A escolha ou utilização facultativa do juízo 100% digital, do Núcleo 4.0 e dos métodos consensuais de permite que a parte ré, imotivadamente, de modo oportunista, após surgido o litígio, opte por litigar em um juízo físico e/ou menos eficiente, a fim de postergar a resolução do litígio, o que, em futuros movimentos, poderá ser endereçado pelo Conselho Nacional de Justiça ou então eventualmente tratado por cláusula de eleição de foro inserta no contrato empresarial (que sabidamente antecede a disputa). Sabe-se que a arbitragem só funcionou quando prevista previamente ao litígio (cláusula compromissória). Assim, é de se pensar nessa forma de tratamento preventivo da litigância nos contratos.
De toda sorte, estas iniciativas do CNJ estão em linha com o que prometeu o Min. Fux, ao assumir a presidência do órgão em 2020 que iniciou um movimento de mudança no Poder Judiciário, de forma que a Justiça está deixando de ser um espaço físico e está se tornando um serviço a ser prestado para todos os cidadãos, previsível, baseada em dados, eficiente e – cada vez mais – digital. Está o Ministro fazendo jus ao que vem defendendo academicamente: eficiência e consequências importam!
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> MACHADO, Rafael Bicca; DIAS, Jean Carlos. Análise Econômica do Processo. In: Direito e Economia no Brasil: estudos sobre a análise econômica do direito. Luciano Benetti Timm (Org.). 4ª Ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A teorização da “Tragédia dos Comuns”, ou seja, o uso excessivo de um bem comum, de modo a deteriorá-lo, foi inicialmente desenvolvida por Gordon, ao examinar a teoria econômica da utilização dos recursos naturais aplicada à indústria pesqueira, cf. GORDON, H. Scott. The Economic Theory of a Common-Property Resource: The Fishery. Journal of Political Economy, 62(2), 1954, pp. 124-142. DOI: http://dx.doi.org/10.1086/257497
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> GICO Jr., Ivo Teixeira. A tragédia do judiciário. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 163-198, set./dez. 2014.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> VER: ARAÚJO, Fernando. A tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios: O problema económico do nível óptimo de apropriação. Coimbra: Almedina, 2008.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> VER: Cadernos FGV Direito Rio. Educação e Direito, vol. 10, 2014. Tema: A Formação da Advocacia Contemporânea. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2014.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Em igual sentido: Timm, Luciano Benetti. Artigos e ensaios de Direito e Economia: A Moderna Gestão das Firmas de Advocacia na Era Globalizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, pp. 3-5.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Disponível em &lt;  <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3512">https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3512</a> &gt;.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Art. 3º. A escolha pelo “Juízo 100% Digital” é facultativa e será exercida pela parte demandante no momento da distribuição da ação, podendo a parte demandada opor-se a essa opção até o momento da contestação.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Art. 3º. § 4º A qualquer tempo, o magistrado poderá instar as partes a manifestarem o interesse na adoção do “Juízo 100% Digital”, ainda que em relação a processos anteriores à entrada em vigor desta Resolução, importando o silêncio, após duas intimações, aceitação tácita.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Disponível em &lt; <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3742">https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3742</a> &gt;.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Disponível em &lt;  <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3604">https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3604</a> &gt;.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Disponível em &lt; <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3843">https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3843</a> &gt;.

Justiça

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CNJ e políticas públicas judiciárias para o século XXI

Quando a Justiça encontra a eficiência