Opinião e Análise

Sofia Signorelli

Luciano Benetti Timm

A 185a sessão ordinária de julgamento do Cade contou com uma interessante discussão prática e com reflexos acadêmicos sobre a possiblidade de avocar um ato de concentração sumário (ou seja, cujo grau de complexidade não fora considerado suficientemente preocupante para estender o tempo de análise sobre os potenciais efeitos da operação) envolvendo a aquisição do grupo Hortigil pela IF Capital, subsidiária integral das Lojas Americanas (LASA).
Mesmo a Superintendência-Geral (SG) autorizando a realização da operação, sem restrições, em 17/09/2021, um de seus conselheiros decidiu incluir, em 5/10/2021, um Despacho Decisório contendo uma proposta de avocação da decisão ao tribunal, o que foi submetido à homologação pelo plenário durante a última sessão, conforme prevê o regimento da Autarquia<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias"><img class="aligncenter cta-tributos size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-tributos.png" width="688" height="688" /></a>
Segundo a justificativa apresentada para tal proposta, foi a preocupação que envolvia a consequência que a “posição de liderança” exercida pelo Grupo LASA viria a ter sobre o mercado de varejo online, considerando o suposto efeito de conglomerado em razão do fortalecimento do ecossistema, bem como outros efeitos verticais decorrentes da integração entre as atividades de entregas de pedidos de mercado do Grupo Americanas e as atividades no varejo físico de produtos alimentícios do Hortigil.
O pedido não atingiu a maioria necessária no Plenário, contando com posições contrárias de outros dois conselheiros, bem como do voto de qualidade do presidente do Cade, que exerceu sua prerrogativa de votar tanto como conselheiro, quanto como presidente<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Não obstante o desfecho processual comentado a tentativa de avocar esta operação abre espaço para importantes reflexões no que diz respeito ao posicionamento da Autarquia com relação à avalanche de atos de concentração submetidos para análise (até agosto de 2021, o número de casos notificados no ano já foi 43% maior do que o mesmo período no ano anterior) e o impacto que a digitalização dos mercados possui ao ensejar questionamentos sobre a necessidade de adaptar os métodos tradicionais de análise. Em evento na FGV-SP no início deste ano, o economista-chefe do Cade, Guilherme Mendes, já havia reconhecido que o tema dos mercados digitais seria uma das prioridades da Autarquia nos próximos anos (como não poderia deixar de ser diferente, dado que é uma das principais preocupações de acadêmicos e autoridades ao redor do mundo)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Considerando que o grupo LASA possui uma plataforma de marketplace, estamos tratando de uma plataforma de dois lados, que conecta compradores e vendedores, oferecendo soluções de pagamentos e logística para facilitar a realização de suas vendas.
Em mercados tradicionais, a aferição do escopo do mercado relevante e do poder de mercado detido por um agente baseia-se na ideia de que os níveis de preço dependem essencialmente da elasticidade da demanda. Como mercados de dois lados possuem custos marginais e elasticidade de preços em ambos os lados, além de estarem sujeitos aos chamados efeitos de rede, ainda que a pressão competitiva possa forçar a diminuição do nível de preços de alguma forma, o benchmark competitivo não é tão claro, pois é necessário aferir a mesma métrica com relação ao outro lado do mercado.
Ou seja, qualquer tipo de medida utilizada para aferir o poder de mercado de um lado será parcial e produzirá efeitos sobre o outro lado da plataforma<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Ademais, o comportamento dos consumidores e dos agentes econômicos em plataformas digitais pode ter características e efeitos distintos, ainda não completamente compreendidos e descritos pela Microeconomia tradicional.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
No caso em tela, por estarmos tratando de um sistema de controle prévio de atos de concentração (instituído a partir do marco legal da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12529.htm">Lei 12.529/2011</a>), o Cade realiza um exercício prospectivo, com o objetivo de imaginar se o mundo após a operação teria sua competitividade comprometida em razão daquele ato.
Assim, ao analisar se a aquisição do Hortigil pelo grupo LASA poderia ocasionar uma concentração indesejada, é necessário realizar um exercício para identificar a presença de possíveis sobreposições horizontais (ou seja, no mesmo nível da cadeia produtiva) e não-horizontais, o que incluiria tanto as verticais (em níveis diferentes da cadeia e que ensejam preocupações com o potencial fechamento de mercado, considerando os efeitos entre a atuação de um agente nos mercados a montante e a jusante), quanto uma forma híbrida de sobreposição, que a Comissão Europeia chamou de “efeito conglomerado”.
Esta terceira tipificação é trazida na disposição preambular do Guia de Concentrações Não Horizontais Europeu, documento igualmente citado na decisão da conselheira. Segundo dispõe o referido documento:
“Fusões conglomerais são aquelas realizadas entre firmas que estejam em um relacionamento não apenas horizontal (com competidores no mesmo mercado relevante) ou vertical (como fornecedores ou distribuidores)” (Tradução livre). Na prática, o foco deste guia é em aquisições entre companhias que sejam ativas em mercados intimamente relacionados (por exemplo, fusões envolvendo ofertantes de produtos complementares ou que pertençam à mesma gama produtiva.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Ao tratar dos possíveis efeitos da operação, a classificação trazida na opinião derrotada no plenário do Cade pareceu ser tanto de uma operação vertical, quanto de um conglomerado – esta última que haveria fugido aos olhos investigativos da SG.
Se aplicarmos o roteiro sugerido pelo Guia Europeu – o que não é isento de problemas, como explicaremos mais adiante –, o mesmo framework de análise é utilizado tanto nos casos verticais quanto para os possíveis conglomerados. Esse framework envolve uma avaliação bastante semelhante àquela utilizada pela Comissão Europeia ao avaliar acordos anti-competitivos de natureza vertical, ou seja, quando a autoridade analisa condutas que possam aumentar os custos para que um concorrente compita ou mesmo tenha seu acesso ao mercado dificultado.
Para tanto, a lógica utilizada denomina-se “habilidade-incentivo-efeito”, prevista no § 31 do Guia, e a partir da qual a seguinte ordem deve ser seguida: em primeiro lugar, uma avaliação sobre a habilidade que a nova entidade possui de fechar o mercado para potenciais rivais; em segundo lugar, se haveria incentivos econômicos para fazer isso e, por último, uma avaliação sobre se a estratégia de fechamento de mercado teria um efeito lesivo à competição, ocasionando uma lesão aos consumidores.
Inicialmente, é importante esclarecer que, ao passo em que as sobreposições verticais foram definidas pelo Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal do Cade (Guia H)<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, os efeitos conglomerais ainda não foram previstos pelo legislador ou pela autoridade brasileira. Ademais, além de não ser uma regulação ou mesmo soft law utilizada no Brasil, foram poucas as vezes que a própria Comissão Europeia decidiu aplicar remédios em casos que envolviam preocupações “conglomerais”. Segundo o levantamento feito pela OCDE<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, considerando o período recente, compreendido entre os anos de 2015 e 2019, dos 117 casos em que a Comissão interveio aplicando remédios, apenas 5% envolveram a identificação de efeitos conglomerados.
Outra observação importante no que diz respeito ao enquadramento do caso concreto ao padrão europeu é que a análise prima facie realizada na opinião minoritária no plenário do Cade, sobre o poder de mercado que a nova entidade apresentaria após a operação, baseia-se em dados ou mesmo evidências não suficientemente robustas; a despeito de que a preocupação subjacente pareça meritória e precise ser discutida academicamente.
Ao que parece, conforme consta do parecer da SG<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, a aquisição do Hortigil pelo LASA faria parte de uma estratégia de fortalecer o sistema de Dual Distribution deste último, o que envolve uma dinâmica de retroalimentação entre o varejo on-line e o offline. Esta dinâmica se basearia na complementação entre os autosserviços oferecidos pelo Hortigil em supermercados, hipermercados e atacarejos e as atividades de entregas e soluções de meios de pagamento através dos aplicativos do LASA.
A pergunta que precisamos fazer é sobre até onde uma operação como esta pode representar um risco de prejuízo tão grande à concorrência e aos consumidores a ponto de precisar ser obstada ou mesmo condicionada à imposição de remédios?
Não se deve esquecer que a regra é a não intervenção do Estado na economia, como preconizado pelo princípio da livre iniciativa, positivado no artigo 170 da Constituição Federal e regulamentado pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm">Lei de Liberdade Econômica</a>. Se há falhas de mercado, no Brasil há certamente muito mais falhas de governo. Certamente, há ferramentas hoje mais sofisticadas de pesquisa empírica – e a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/direito-nobel-de-economia-19102021">recente premiação do Nobel de Economia</a> está aí para demonstrar<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Nesse sentido, em que pese a necessidade desta Autarquia debruçar-se sobre os novos desafios trazidos com a proliferação das plataformas digitais, um precedente como este exige mais do que referenciar-se em doutrinas e dispositivos estrangeiros, sendo necessário – além de ajustes conceituais e dogmáticos – trazer robustas evidências empíricas que virão da Economia, da Psicologia Comportamental e das Neurociências, justificando os motivos para a intervenção no livre mercado.
Afinal, diferentemente de analisar um fato já ocorrido, como é feito ao discutirmos o potencial lesivo de uma conduta – e que é o dia a dia da vida do jurista , isto é, examinar as provas do que ocorreu no passado –, a análise de estruturas compreende um exercício prospectivo, que há de ser realizado com muita cautela e com bons fundamentos factuais e científicos, de modo que a regulação esteja sempre um passo atrás do mercado, evitando-se assim o indesejável efeito de restringir o crescimento econômico e a inovação.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> RICADE, Art. 122, § 4º.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A necessidade de desempatar a votação remete ao término do mandato do conselheiro Bandeira Maia, cujo gabinete ainda não foi sucedido, fazendo com que o tribunal esteja atualmente composto por seis membros (contando com o presidente).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.youtube.com/watch?v=xxnfaZZUCUA">https://www.youtube.com/watch?v=xxnfaZZUCUA</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> O Cade decidirá, a depender do segmento envolvido na operação, se irá mensurar a concorrência do agente em apenas um dos mercados ou em ambos, o que, por isso, irá requerer como recurso adicional uma literatura além do que este Guia propõe, pois há peculiaridades a serem consideradas. – página 53 do Guia de Análise de Atos de Concentração Horizontais do Cade.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> JOLLS, Christine; SUNSTEIN, Cass R.; THALER, Richard. A Behavioral Approach to Law and Economics. Stanford Law Review, v. 50, n. 5, p. 1.471-1.550, 1998.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> § 5o das disposições introdutórias do Guia: “Conglomerate mergers are mergers between firms that are in a relationship, which is neither purely horizontal (as competitors in the same relevant market) nor vertical (as suppliers or customers)”. Disponível em <a href="https://ec.europa.eu/competition/mergers/legislation/draft_nonhorizontal_mergers.pdf">https://ec.europa.eu/competition/mergers/legislation/draft_nonhorizontal_mergers.pdf</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Deve-se considerar o nível de integração da cadeia produtiva uma vez que a necessidade de verticalização por parte das empresas atuantes, entre elos de fornecimento de insumos e outros, pode dificultar a entrada ou a atuação competitiva de um entrante, assim como a rivalidade por parte de agentes que tenham deficiências nessa integração. – Nota de Rodapé 11 da página 35.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> <a href="https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/WD(2020)8/en/pdf">https://one.oecd.org/document/DAF/COMP/WD(2020)8/en/pdf</a>, p. 2.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Parecer 389/2021/CGAA5/SGA1/SG
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> <a href="https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/10/11/premio-nobel-de-economia-2021.htm">https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/10/11/premio-nobel-de-economia-2021.htm</a>

cade

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JOTA

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