Opinião e Análise

Cesar Santolim

Luciano Benetti Timm

Pedro de Menezes Carvalho

Neste período de início de governo, fortemente marcado por uma mudança de estratégia de gestão pública, um dos temas que vem ganhando relevância é sobre qual a política será adotada para o setor de saneamento básico.
Vários pontos são debatidos: de modificação nas estruturas contratuais até a revogação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico. Com isso, um ambiente de incerteza e de insegurança jurídica aflige o setor. O presente texto tem como objetivo analisar as modificações realizadas pelo atual governo em relação à competência regulatória da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ana">ANA</a>. 
A recente Lei nº 14.026/2020 atualizou o marco legal do saneamento básico no Brasil, alterando diversas outras leis, em especial as Leis nº 9.984/2000, 11.107/2005 e 11.445/2007. Destas mudanças é possível destacar: a ampliação das competências da ANA (denominada então “Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico”).
Neste cenário, as prestadoras de serviços de saneamento no Brasil deverão empenhar-se no exato cumprimento desta legislação, e das normativas que devem ser produzidas pela ANA. Esta alteração normativa foi feita com o propósito de permitir a implementação dos objetivos de universalização: 99% da população brasileira com acesso a água potável e 90% com acesso ao serviço de tratamento de esgoto.
Todavia, esta questão envolvendo a competência regulatória – a qual estava completamente estabilizada até alguns dias – sofreu uma reviravolta com o possível deslocamento da competência regulatória para o poder central.
A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Mpv/mpv1154.htm">MP nº 1.154/2023</a> deu nova redação ao artigo 3º da Lei nº 9.984/2000, suprimindo, na definição da ANA, a menção ao “saneamento básico”, assim como a sua competência para instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico.
Somado a isto, o artigo 20 da mesma Medida Provisória, ao definir a competência do Ministério das Cidades, incluiu a promoção de programas, ações, regulação, normatização, gestão e financiamento de políticas voltadas ao saneamento básico. Como resultado, houve a leitura de que a alteração teria promovido redução na competência da agência, transferindo-a para o Ministério das Cidades.
Contudo, diante de um olhar mais atento, observa-se que a MP não alterou o que diz o art. 4º-A da Lei nº 9.984/2000, mantendo para a ANA a competência para a instituição de normas de referência para o setor de saneamento básico.
Assim sendo, as competências materiais da ANA não foram alteradas. O que houve foi uma mudança na estrutura organizacional do governo federal. A interpretação sistemática da legislação indica apenas a atecnicidade no novo conteúdo do art. 3º da Lei nº 9.984/2000, sem impactos em termos de eficácia da legislação. 
Essa atecnicidade se reflete no decreto regulamentador (Decreto nº 11.333/2023). Para que se dê a essa norma interpretação que preserve a sua validade, é imperativo entender que as competências outorgadas ao Ministério das Cidades não avançam sobre aquelas reconhecidas por lei à ANA. 
Trata-se do conflito entre a norma comum e a norma especial. A Teoria do Direito soluciona tal choque por meio do princípio da especialidade normativa, do que decorre que a norma geral não revoga a a norma específica, mesmo sucedendo-a no tempo. Isso não significa que o Ministério das Cidades não tenha competência para tratar de Saneamento Básico. Ao contrário, conforme citado, a competência existe, imposta por meio de Medida Provisória. Todavia, o seu exercício estará submetido aos direcionamentos regulatórios definidos pela ANA, a qual detém a competência específica. 
Neste ponto, a Teoria do Direito se encontra com a Teoria Econômica, na medida em que o debate ofertado também é um gerador de custos transacionais. Inicialmente pelo fato de que a colisão normativa gera um custo interpretativo, haja vista a existência de elementos de insegurança: se a regulamentação do sistema de Saneamento Básico será realizada pela agência reguladora (competência  específica para fixar as diretrizes) ou pelo Ministério das Cidades (competência genérica para definir políticas públicas).
O custo de transação pode ser observado sob a perspectiva do investidor, pois a atratividade do setor será naturalmente reduzida diante da ampla possibilidade de interferências políticas. O resultado se dará com a redução de investimentos privados ou com a elevação dos riscos do empreendimento, a qual gera um impacto direto nas tarifas cobradas ao usuário final. Neste ponto, o custo de transação também pode ser observado na perspectiva do usuário, uma vez que este terá uma redução na qualidade no serviço prestado (remontando o que acontecia no Brasil no início da década de 90 do século passado) e/ou uma elevação tarifária, pois a elevação do risco no setor será naturalmente precificada no valor da tarifa cobrada.
No surgimento das agências reguladoras o objetivo dos administrativistas era mitigar a competência do poder central (leia-se  o Poder Executivo, via Administração Direta) para regular e gerir determinados serviços públicos, a fim de que um órgão regulador específico, com relativa autonomia e independência (nos termos da lei) exercesse tal atividade, protegendo não só o interesse direto da Administração, mas também o dos demais envolvidos (agentes privados e usuários). Este movimento conduz a uma redução dos custos de transação incidentes, e, como consequência, há uma melhora situacional para todos os players atuantes no processo. 
Na sua gênese, as agências reguladoras foram criadas para atuar de forma equidistante entre o interesse dos usuários, dos prestadores e do Poder Executivo. Objetivando evitar pressões conjunturais em setores estratégicos. Assim, as agências reguladoras, embora formalmente integrando a Administração Pública, não se encontram dentro da esfera de controle direto do Poder Executivo e, sim, vinculadas às disposições legais emanadas do Congresso Nacional.
Entender de modo diverso, no sentido de que a mudança trazida com a MP teria deslocado inteiramente a competência regulatória no setor do saneamento básico, da ANA para o Ministério das Cidades, afronta diretamente tanto a Teoria do Direito quanto  a Teoria Econômica. Se viabilizada, representa um retrocesso na gestão pública, pois recoloca no Poder Executivo a possibilidade de interferência direta em setores econômicos estratégicos, desequilibrando as relações no tocante aos demais interessados.

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A teoria do Direito, a teoria econômica e a competência regulatória

O dilema do saneamento básico