Com a saudável alternância de poder em uma democracia, a mudança de governo ocorrida nos primórdios de 2023 trouxe consigo um natural rearranjo de poder, cadeiras e funções no governo eleito. Novos nomes foram alocados em posições-chave de gestão e comando da República, com ministros de Estado sendo empossados e organizando suas equipes de trabalho.
Afora a legítima discussão acerca da enorme quantidade de ministérios na Esplanada, sua real pertinência para o país, os custos advindos dessa estrutura inchada e os desafios que esse grupo numeroso de mandatários gera para a governabilidade, é natural – e até esperado – que a alternância de governos resulte em uma ampla modificação da estrutura da Administração Pública federal, dos titulares das pastas ministeriais e do direcionamento das políticas de cada governo.
Contudo, uma alteração significativa na estrutura dos ministérios chamou a atenção, talvez de forma não tão positiva: o desmembramento do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), em duas pastas: o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAP), chefiado pelo agora ministro Carlos Fávaro (PSD-MT), e o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDAAF), encabeçado pelo ministro Paulo Teixeira (PT-SP).
De acordo com o artigo 19 da MP 1154/2023, na nova estrutura de gestão competirão ao MAP as atribuições atinentes (i) à política agrícola; (ii) à produção e fomento agropecuário; (iii) à informação agropecuária; (iv) à defesa agropecuária e segurança do alimento; (v) à pesquisa; (vi) à conservação e proteção de recursos genéticos; (vii) à assistência técnica; (viii) à irrigação e infraestrutura hídrica; (ix) à informação meteorológica; (x) ao desenvolvimento rural sustentável; (xi) à conservação e manejo do solo e da água; (xii) às boas práticas agropecuárias e de bem-estar animal; (xiii) ao cooperativismo e associativismo; (xiv) às questões de energia e agroenergia no campo; e (xv) às negociações internacionais, notadamente de cunho comercial, relativas às cadeias de valor dos agronegócios.
Por sua vez, o artigo 25 da mesma norma estabelece que compete, em síntese, ao MDAAF as questões atinentes (i) à reforma agrária e à regularização fundiária; (ii) ao acesso à terra; (iii) ao cadastro de imóveis rurais e à governança fundiária; (iv) à demarcação de terras quilombolas; (v) ao desenvolvimento rural sustentável; (vi) à política agrícola, cadastro, cooperativismo, energização, assistência técnica, infraestrutura hídrica e pesquisa e desenvolvimento voltados à agricultura familiar; (vii) à educação no campo; (viii) à comercialização, abastecimento, armazenagem e garantia de preços mínimos; (ix) aos estoques reguladores de produtos agropecuários; e (x) à produção e divulgação de informações sobre sistemas agrícolas e pecuários.
As competências atribuídas pela MP 1154, por óbvio, poderão ser alteradas ao longo do trâmite do diploma legal pelo Congresso Nacional. A matéria, que está em vigor desde sua publicação no Diário Oficial da União em 1º de janeiro, será objeto de análise pelos integrantes do parlamento para que possa ser aprovada, com ou sem alterações, e convertida em lei, ou simplesmente não aprovada, tendo seus efeitos cessados após 60 ou 120 dias de sua publicação. Há, contudo, uma expectativa de que poucas ou nenhuma alteração relevante sejam realizadas, e que as atribuições estabelecidas aos ministérios em questão sejam aprovadas e convertidas em lei pelos parlamentares, se não no todo, em substancial parcela.
Da análise do texto originalmente publicado, reitera-se, já em vigor, pode ser observado que determinadas competências atribuídas ao MAP e ao MDAAF podem, em algum momento, colidir e gerar incerteza a respeito de quem é responsável e competente pelo quê.
Um primeiro exemplo hipotético diz respeito às questões inerentes às cooperativas: muitas delas relacionadas à atividade agropecuária congregam grandes produtores e pequenos sitiantes, ambos beneficiados em alguma medida pela junção de forças. Nesse caso, políticas voltadas ao associativismo na agropecuária (artigo 19, inciso XIII, da MP 1.154), elaboradas pelo MAP, e na agricultura familiar (artigo 25, inciso XV, do mesmo diploma), estabelecidas pelo MDAAF, poderão entrar em eventual conflito e gerar uma zona cinzenta de atribuições, competências e objetivos, prejudicando do grande ao micro produtor rural. Este é apenas um exemplo, até modesto, do que pode vir a acontecer no modelo vigente.
Afora eventuais conflitos de competência e atribuições, há também um risco, nos moldes das determinações do texto original da MP 1154, de perda de tempo e energia em conceitos e ideologias que talvez não mais encontrem sustentação no atual cenário do agronegócio nacional.
Na prática, não há como – ou, ao menos, seria muito difícil e subjetivo – desvencilhar os esforços comerciais de abertura de mercados para a produção agropecuária brasileira das tratativas para estabelecimento de preços mínimos e estoques reguladores. Haveria, nesse cenário, um enorme risco de substancial sazonalidade de preços para os produtores locais e de eventual quebra e perda de contratos e parcerias comerciais estratégicas em nome de uma política de preços que beneficie apenas um dos lados do negócio, isto é, o mercado doméstico em detrimento dos parceiros comerciais estrangeiros, e vice-versa.
Seria difícil para o produtor rural, especialmente o micro, o pequeno e o médio, encontrar uma solução adequada e uma remuneração justa de sua produção caso haja intervenção estatal exagerada e conflito entre determinações de mercado e de política de preços e estoques com base em uma canetada. Haveria, nesse cenário, forte insegurança jurídica e alto risco de remuneração inadequada ou insuficiente ao produtor de alimentos.
No mais, vale destacar que a segregação do outrora MAPA em duas pastas distintas e, aparentemente, com vieses, ideologias e interesses que vão se conflitar em algum(ns) momento(s), representa um desserviço ao agronegócio nacional. Está claro, como muito bem salientado por grandes especialistas no assunto, como Helen Jacintho e Xico Graziano, inobstante opiniões de cunho político, que a segregação do agronegócio nacional em “dois agros”, um do grande produtor e outro das famílias pequenas produtoras, não faz mais muito sentido no século 21 e após toda a aplicação de tecnologia e melhorias no campo no Brasil ao longo das últimas décadas.
Segregar a pasta responsável pela agricultura, pecuária, abastecimento e assuntos voltados à reforma agrária e colonização em duas estruturas distintas pode retardar a tomada de decisões importantes, gerar conflitos de ideias e políticas públicas e, ao invés de favorecer a todos, prejudicar o setor como um todo, de alto a baixo.
Logicamente, há fortes e evidentes contornos políticos e ideológicos na decisão de segregar os assuntos do agronegócio em duas pastas. Há, contudo, uma real possibilidade de que determinados e relevantes assuntos, pautas e diretrizes para o setor sejam prejudicados por questões operacionais, afetando diretamente a estratégia, do setor e do país, de consolidar o Brasil como grande e dominante potência mundial na produção e exportação de alimentos e na preservação ambiental. Infelizmente ainda há fome no Brasil e medidas urgentes devem ser adotadas para a resolução dessa triste realidade, porém não parece ser a burocratização das engrenagens de poder que resolverá ou contribuirá para a resolução de tal moléstia. Nesse caso, saem perdendo desde o microprodutor familiar até o grande ruralista, passando pela sociedade brasileira e pelos interesses do Brasil no mundo.