Opinião e Análise

José David

Como amplamente sabido, o agronegócio é um importante indutor de riqueza no Brasil, especialmente nas regiões interioranas. Somente esse setor foi responsável por 27,4% do Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2021, de acordo com os <a href="https://www.cepea.esalq.usp.br/br/releases/pib-agro-cepea-pib-do-agro-cresce-8-36-em-2021-participacao-no-pib-brasileiro-chega-a-27-4.aspx">dados compilados pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA)</a>, da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
É sabido, também, que o mercado de capitais tem atraído cada vez mais o agronegócio, propiciando fontes alternativas de financiamento privado para a atividade e a economia rurais, ao passo que oferece aos investidores comuns e aos institucionais a possibilidade de alocação de capital em ativos, operações e companhias do pujante agronegócio nacional. Porém, um evento recente chacoalhou o mercado, trazendo à tona alguns pontos de atenção.
Na esteira do sucesso advindo da popularização dos fundos de investimento imobiliários, que atualmente <a href="https://einvestidor.estadao.com.br/investimentos/fundos-imobiliarios-investidores-brasil-alta/">congregam aproximadamente 1,5 milhão de cotistas em todo o país</a>, e no embalo da potência desenvolvimentista que é o agronegócio para a economia nacional, algumas importantes casas e boutiques do mercado resolveram apostar no lançamento de fundos imobiliários relacionados aos imóveis rurais.
Aqui vale um alerta: não se trata do Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais, o popular Fiagro, instituído pela Lei 14.130/2021 e inserido no ordenamento através do artigo 20-A da Lei 8.668/1993, com regulamentação conferida pela Instrução CVM 39/2021, mas sim do fundo imobiliário positivado no artigo 1° da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8668.htm">Lei 8.668/1993</a> e regulamentado pela Instrução CVM 472, de 2008.
Mais do que uma inovação no mercado e uma excelente oportunidade para os pequenos investidores apostarem na valorização do preço e no aumento da demanda por terras, o lançamento, gestão e administração dos fundos imobiliários de fazendas passaram a requerer maior capacitação dos profissionais envolvidos nesse mercado e do corpo técnico alocado para tal fim pelos titãs da Faria Lima e do Leblon. Surgia, assim, um novo eldorado dos investimentos, com excelentes oportunidades de geração de riqueza para todos os envolvidos.
A montagem de fundos de investimento, sejam eles de natureza imobiliária ou não, os quais congregam capital para aplicação na economia, sempre demanda a análise criteriosa das oportunidades de investimentos às quais o fundo se propõe a realizar em nome dos cotistas. Nos fundos imobiliários de imóveis rurais, não seria diferente: a aquisição de terras para arrendamento ou posterior venda demanda, por certo, uma análise criteriosa das condições das fazendas que poderão vir a ser adquiridas e encarteiradas no fundo, a popular due diligence ou, em terras tupiniquins, auditoria prévia dos ativos que possam vir a compor a carteira do fundo.
Ocorre que um dos principais e vanguardistas fundos de investimento imobiliário em terras do mercado, administrado e gerido por uma das instituições financeiras mais respeitadas do país, sofreu um recente revés em relação a um dos ativos que integram sua carteira. Os arrendatários de uma das fazendas que compõem o patrimônio do fundo, adquirida com substancial desconto (deságio aproximado de 40%) em uma operação de sale and leaseback (venda concomitante ao aluguel da área para o vendedor) em agosto de 2021, entrou com <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/recuperacao-judicial">pedido de recuperação judicial</a> apenas alguns meses após a efetivação da operação, o que gerou espanto e certo pânico no mercado no final de junho.
No cerne da questão, o risco efetivo de calote ou suspensão, por tempo indeterminado, do pagamento mensal do arrendamento pactuado entre as partes, assim como o questionamento da regularidade da aquisição do ativo por parte dos credores dos vendedores e ora arrendatários, em um imbróglio que, no extremo, pode resultar no desfazimento da aquisição realizada pelo fundo. Considerando que a fazenda objeto de discórdia representa 24% do patrimônio do fundo, há enorme incerteza no mercado sobre como e, principalmente, quando a questão será resolvida e os cotistas poderão voltar a gozar dos frutos financeiros distribuídos pelo fundo.
Sobre o ocorrido, algumas questões ficaram no ar: como um risco de insolvência tão evidente dos arrendatários, dado o pequeno lapso temporal entre a aquisição da fazenda e o protocolo do pedido de recuperação judicial, assim como o perigo de incorrimento em fraude a credores não foi detectado na auditoria realizada anteriormente à aquisição da fazenda pelo fundo? A aquisição do ativo com enorme deságio, alardeada como uma oportunidade ímpar de investimento, em nenhum momento ao menos chamou a atenção ou, em outras palavras, gerou desconfiança nos envolvidos? Se algum risco de inadimplência ou responsabilização por fraude aos credores foi identificado no processo de auditoria, por que não houve ampla divulgação ao mercado e aos investidores em geral de tais informações? São questões a serem pensadas e, se necessário, respondidas.
Ademais, uma questão relevante veio à tona: o contrato de sale and leaseback firmado entre as partes — o fundo adquirente/arrendador e os produtores rurais vendedores/arrendatários —, com duração de 10 anos, estabelece que os pagamentos mensais realizados ao fundo a título de arrendamento seriam corrigidos anualmente mediante aplicação do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ipca">Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)</a> do período. Contudo, consideradas as especificidades do setor, assim como a sistemática de cálculo do referido padrão de correção monetária, seria esse índice, o IPCA, o mais adequado para correção dos pagamentos mensais recebidos a título de arrendamento rural?
Tanto a Lei 4.504/1966, que dispõe sobre o Estatuto da Terra, quanto o Decreto 59.566/1966, que regulamenta as matérias de natureza agrária, estabelecem, respectivamente nos artigos 92, parágrafo 2°, e 16, que os contratos de arrendamento podem ser reajustados de forma periódica conforme “índices aprovados pelo Conselho Nacional de Economia”. Esse órgão foi extinto em 1967, com a promulgação da Constituição daquele ano. Atualmente, são utilizados como parâmetro os índices calculados pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), entre os quais o IPCA, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), ou o Índice Geral de Preços ao Mercado (IGP-M), da Fundação Getúlio Vargas.
Até aí, não há qualquer ilegalidade ou incorreção formal na adoção do IPCA como índice de correção monetária de contratos de arrendamento. No entanto, considerando a sistemática de valorização de preços de terras no Brasil, que com frequência superam os índices de inflação oficiais em razão de distintas variáveis, bem como a sistemática de cálculo e pesquisa dos índices supramencionados e atualmente válidos e vigentes, que privilegiam a atividade econômica urbana e de consumo, é complexo assimilar que o IPCA seja o índice mais adequado para atualização de preços de arrendamento de terras. Outras métricas, não oficiais, mas tão objetivas e cabíveis quanto, como o preço das sacas de commodities plantadas na área arrendada, poderiam melhor capturar a correção aplicável ao contrato de arrendamento firmado, gerando, possivelmente, maior riqueza para o fundo e, consequentemente, seus cotistas.
O caso em questão, inédito e citado apenas como exemplo, está longe de ser solucionado. Envolve questões jurídicas, regulatórias e de mercado. Contudo, as implicações devem ser acompanhadas com atenção pelos agentes de mercado, os reguladores e, principalmente, os investidores, a fim de que eventuais equívocos sejam evitados e riscos, mitigados, quando da estruturação, gestão e administração de outros fundos de mesma natureza, tendo em vista o ainda enorme potencial para esse segmento de investimento em terras no Brasil.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>

pexels-jahoo-clouseau-575102

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Caso de um dos principais fundos de investimento imobiliário em terras mostra complexidade do setor

Investimento rural e suas especificidades

Caso de um dos principais fundos de investimento imobiliário em terras mostra complexidade do investimento rural