Opinião e Análise

José David

Acontecimentos geopolíticos de grande magnitude geralmente promovem mudanças estruturais relevantes em setores e segmentos cruciais da economia, da sociedade e, eventualmente, até no ordenamento jurídico. Com o conflito armado no Leste Europeu, uma região de terras férteis e produção relevante de insumos e commodities cruciais para a alimentação humana e animal, e o aumento dos índices de inflação em todo o mundo decorrentes das quebras das cadeias logísticas, dos reflexos pandêmicos e de variados outros fatores, o agronegócio nacional certamente seria afetado – e foi.
Um discurso comum no setor é o de que o Brasil é o celeiro do mundo. De fato, nosso país figura como um dos mais importantes players na produção e exportação de diversas culturas do agronegócio mundial, tais como soja, milho, algodão, cana-de-açúcar, suco de laranja, café, dentre vários outros, que servem de alimento e fonte de energia para bilhões de pessoas em todo o globo.
É verdade, também, que a produção nacional de carnes bovina, suína e de frango coloca o Brasil em posição privilegiada quanto ao fornecimento de proteínas para alimentação da crescente população mundial, cada vez mais urbana, instruída, com melhor poder de compra e sedenta por uma cesta de consumo mais nutritiva. Ocorre que o Brasil, por décadas, ao longo da construção de toda a sua potente cadeia de produção, relegou ao segundo plano a produção de insumos básicos, o que nos deixa vulneráveis a choques externos e a parceiros comerciais pragmáticos, um equívoco estratégico substancial.
Uma amostra clara da cegueira pontual estratégica no agronegócio nacional veio à tona, justamente, com a junção dos elementos acima, quais sejam, um conflito militar em uma região-chave para a produção de insumos básicos e a eclosão de uma onda inflacionária mundial que assola toda a cadeia produtiva.
Tornaram-se escassos insumos básicos como os fertilizantes, dos quais Rússia e Bielorrússia figuram como alguns dos maiores produtores. Esses insumos são largamente utilizados na produção das culturas no Brasil voltadas, notadamente, para a alimentação humana e animal (culturas essas que representam fonte substancial de divisas para o país) e, como manda a lei econômica da oferta e da demanda, ficaram extremamente caros, cujos reflexos já são sentidos na pele pelos produtores rurais brasileiros.
Nesse contexto, questiona-se como o Brasil se deixou depender tão profundamente de fornecedores de fertilizantes estrangeiros. Cerca de 85% dos fertilizantes utilizados hoje em solo brasileiro – ou aproximadamente 46 milhões de toneladas – são importados, sendo que somente as culturas de soja, milho e cana-de-açúcar, importantes pautas de exportação nacional, respondem por 3/4 do consumo no país, de acordo com dados da Associação Nacional para Difusão de Adubos (ANDA).
Aproximadamente 9% da produção mundial desses insumos é adquirida pelo Brasil, que, muito embora não seja o maior importador (fica atrás da China, da Índia e dos Estados Unidos), é, de longe, entre os maiores adquirentes, aquele que possui a produção doméstica mais deficitária, exigindo a importação de volumes substanciais. Em outras palavras: somos ótimos e extremamente competentes na produção agrícola e pecuária, mas dependemos profundamente de parceiros internacionais, que, em variadas situações, são nossos concorrentes no comércio mundial, para termos acesso a um dos insumos mais básicos da produção.
Com um simples embargo econômico, uma decisão estratégica dos países fornecedores ou uma quebra logística, podemos ficar sem matéria-prima básica, como potássio, nitrogenados e fosfatados, influenciando diretamente a produção e a economia doméstica.
A questão se torna ainda mais relevante quando se verifica que o Brasil é a grande esperança para a produção de alimentos em larga escala para o mundo, dadas as já conhecidas vantagens estratégicas e a vocação natural do país para a produção agropecuária – clima, extensão territorial, solo, abundância hídrica, dentre outras vantagens. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) estima que o Brasil deverá aumentar em 41% sua produção de alimentos até 2026, visando ao atendimento da demanda mundial por alimentos, e tal crescimento só será possível, dentre outros fatores, através da aplicação crescente e precisa de fertilizantes.
Um equívoco estratégico brasileiro pode prejudicar não apenas a produção doméstica, a geração de riquezas e a balança comercial do país como, também, coloca em risco o suprimento da crescente demanda internacional por alimentos. Uma questão estratégica para o país, que poderá nos alçar ao mais alto patamar de relevância na geopolítica mundial, que pode ser colocada em xeque em razão de escolhas erradas, decisões estratégicas equivocadas e da falta de planejamento e visão de longo prazo no Brasil.
Visando, ainda que tardiamente, sanar esse equívoco estratégico cometido no desenvolvimento do agronegócio nacional, exposto de forma clara no cenário atual de escassez e elevação de custos, foi recentemente lançado pelo governo federal o Plano Nacional de Fertilizantes (PNF), consubstanciado no <a href="https://in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.991-de-11-de-marco-de-2022-385453056">Decreto 10.991/2022</a>, cujo objetivo principal é reduzir a dependência da importação desses insumos para consumo doméstico, através da implementação de medidas que fomentem a produção e o desenvolvimento em território nacional de fertilizantes e suas tecnologias. A meta declarada é a redução das importações ao patamar de 45% do consumo interno, até 2050, em uma busca maior por autonomia.
Dentre as medidas que poderão ser implementadas pelo PNF, destacam-se o fomento à produção de fertilizantes organominerais e orgânicos em plantas estratégicas, além da implementação de medidas que facilitem a adoção de tecnologias e a reutilização de subprodutos agrícolas com potencial para fertilização do solo. Um ponto importante do PNF reside no desenvolvimento de medidas que reduzam a carga tributária na cadeia de fertilizantes, tanto em relação ao produto importado, quanto para fins de produção nacional.
Hoje, já há um conjunto de medidas que desoneram a cadeia em âmbito federal, porém em nível estadual e distrital a tributação pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (<a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/icms-entenda-os-aspectos-fundamentais-13052021">ICMS</a>) ainda recai de maneira substancial sobre a comercialização, especialmente do produto desenvolvido no Brasil, ainda que haja redução de base de cálculo por força do Convênio 100/1997, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Um contrassenso tributário que torna a importação mais vantajosa do que a produção nacional sob o viés fiscal, fragilizando ainda mais a indústria brasileira e expondo a nossa fragilidade estratégica quanto às políticas relacionadas aos insumos de produção.
A implementação de medidas que favoreçam e fomentem a produção doméstica de fertilizantes, ainda que consideravelmente tardias e adotadas em meio à passagem do olho do furacão, representa um avanço em termos de segurança alimentar, econômica e social ao Brasil, e uma garantia maior, caso efetivamente implementadas as medidas, de que o país, de fato, conseguirá manter os mais elevados padrões de produção e exportação de alimentos nas décadas vindouras.
Para ser verdadeiramente competitivo, o agronegócio nacional necessita de pensamento estratégico, sistêmico, interligando as variáveis sensíveis de todos os elos da cadeia – antes, dentro e depois da porteira –, com segurança, planejamento e visão macro. A adoção de medidas que favoreçam a pesquisa e produção doméstica de fertilizantes e um melhor ambiente de negócios vem ao encontro das necessidades para resolução de alguns dos gargalos que ainda impedem o desenvolvimento pleno de todo o nosso potencial no campo. Da tragédia da guerra e do boom inflacionário global poderá surgir, ainda que tardiamente e como forma de correção de um atraso histórico, um ponto de virada na estratégia do agronegócio nacional.

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JOTA

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