Opinião e Análise

José David

Instituída originalmente pela Constituição de 1891, a primeira do Brasil em sua era republicana, a tributação sobre as terras é, até os tempos atuais, origem de polêmicas e objeto de enorme cobiça pelo poder público, face ao gigantismo do território nacional, a pujança do agronegócio brasileiro e a pretensa baixa arrecadação decorrente da propriedade de imóveis rurais, representando uma fonte preciosa de recursos para diferentes entes da federação, especialmente os com situação fiscal mais comprometida.
Estabelecido na Constituição Federal de 1988, atualmente vigente, no inciso VI do artigo 153, e positivado pela Lei 9.393/1996, o <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/itr-entenda-o-que-e-como-funciona-20082021">Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR)</a>, regulamentado pelo Decreto 4.382/2002, tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel localizado fora da zona urbana do município, ainda que haja controvérsias a respeito de tal definição, em 1º de janeiro de cada ano.
Há “zonas cinzentas” a respeito da incidência ou não do ITR, como, por exemplo, nas “fazendas urbanas”, hoje até comuns em grandes centros urbanos, razão pela qual o critério de destinação do imóvel tem se sobressaído sobre o critério de localização para fins de incidência do imposto em questão ou do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), de competência dos municípios e do Distrito Federal.
Uma característica marcante do ITR é sua função extrafiscal, isto é, a utilização do imposto para atingir finalidades diversas da arrecadação pura e simples para financiamento do Estado. Nesse sentido, o ITR tem por objetivo principal desestimular a manutenção de largas porções de terras improdutivas (os latifúndios), fundado no princípio constitucional da progressividade, de modo a permitir, com base na legislação, a aplicação de alíquotas diferenciadas, que variam de 0,03% a 20%, menores quanto maior o grau de utilização da terra comparativamente à área do imóvel rural. Assim, propriedades no campo com baixo grau de utilização e grande dimensão territorial tendem a recolher elevado ITR a cada ano, ao passo que pequenas porções de terra com alto índice de utilização tendem a sofrer uma tributação mais reduzida.
Por força da promulgação da Emenda Constitucional 42/2003, o Texto Constitucional foi alterado no sentido de permitir que o ITR, desde 1964 de competência da União, pudesse vir a ser tanto fiscalizado quanto cobrado pelos municípios que firmassem convênio com a União, ficando estes com até a integralidade do imposto arrecadado. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, com mais de 5.500 municípios, e com sérias restrições orçamentárias em órgãos de fiscalização e controle, é natural considerar que as autoridades municipais teriam melhores condições de zelar pela integridade do ITR do que a Receita Federal.
Muito embora a alteração da Constituição Federal tenha facilitado e, em certa medida, aumentado a fiscalização e a cobrança do ITR a partir de 2003, vez que muitos municípios firmaram convênios com o fisco federal e passaram, desde então, a ficar responsáveis pelo controle do imposto, é inegável que esta espécie de “municipalização tácita” do ITR comprometeu, ainda que indiretamente, os alicerces deste imposto, notadamente em relação à sua função extrafiscal para controle das terras no país e desestímulo à manutenção de propriedades rurais improdutivas.
Dados do “Impostômetro”, ferramenta da Associação Comercial de São Paulo para compilação de informações da arrecadação de tributos no Brasil, indicam que, em 2010, foram pagos cerca de R$ 525 milhões de ITR no país. Cinco anos depois, em 2015, esse número já havia saltado para aproximadamente R$ 1,2 bilhão, e em 2021, a arrecadação deste imposto somou impressionantes R$ 1,8 bilhão. Embora os números indiquem a alta crescente e sustentada da arrecadação do ITR, é notório que o mencionado imposto representa um percentual ínfimo das receitas derivadas da União para 2021, calculadas em R$ 2,6 trilhões.
Vale destacar que, atualmente, pouco mais de 20% dos municípios brasileiros possuem convênio firmado com o fisco federal, cenário em que 100% da arrecadação do ITR é destinada aos cofres locais – uma determinação constitucional, na medida em que o imposto é de competência da União, mas quem fica com o valor arrecadado, nesses casos, é o município da sede do imóvel rural, de modo que, em caso de autuação, a defesa administrativa deve ser apresentada à Receita Federal, ainda que a fiscalização tenha sido conduzida pelo fisco municipal.
Fato é que muitos municípios têm arrecadado quantias elevadas e substanciais a título de ITR, especialmente quando possuem convênio firmado com a União e ficam com 100% da arrecadação do imposto, ao contrário dos 50% estipulados no Texto Constitucional para os municípios que não possuem convênio – hoje, aproximadamente 80% deles. Como exemplo, destaca-se Maracaju, município sul-mato-grossense ranqueado como maior arrecadador de ITR no Brasil em 2021. De um total de aproximadamente R$ 32 milhões em tributos arrecadados no último ano, cerca de R$ 19 milhões advieram do ITR, de acordo com dados oficiais do Ministério da Economia<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Ou seja, mais da metade do valor arrecadado naquele município tem como origem a cobrança do ITR – um reforço e tanto de caixa.
Em um contexto de contas públicas apertadas, administração inchada, crise em âmbito mundial e valorização de terras em um cenário inflacionário acelerado, a possibilidade da arrecadação do ITR faz brilhar os olhos de muitos. Considerando que a base de cálculo do imposto em questão é o Valor da Terra Nua (VTN) que, veja só, é definido pelos Poderes Executivos locais, em um cenário em que 100% da arrecadação do ITR fique com o município, tem-se aí uma suculenta fonte de recursos e custeio da máquina pública local.
Obviamente, a maioria dos municípios é gerida de forma consciente e responsável no Brasil, mas não são poucos os exemplos de Poderes Públicos locais que aumentam substancialmente o VTN, ano a ano, em percentuais muito superiores à valorização da terra no mercado local, de modo a inflar a base de cálculo e elevar a arrecadação do ITR. Nesses casos, o questionamento administrativo e, não raro, judicial das cobranças em questão se faz necessário.
Ademais, não são poucas as iniciativas legislativas em trâmite no Congresso Nacional que visam a alterar as regras e a função extrafiscal do ITR, no sentido explícito de aumentar a arrecadação com esse imposto e sobrecarregar ainda mais o pagador de tributos no país.
Como exemplo, destaca-se o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/138869">PL 5135/2019</a>, em trâmite no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/senado">Senado</a>, que busca decuplicar a arrecadação do ITR através da calibragem de alíquotas, além de outras iniciativas de deputados federais e Senadores com o objetivo de desfigurar o ITR e aumentar o valor cobrado do imposto, seja por alteração nas alíquotas atualmente vigentes, seja pela modificação da base de cálculo.
Não se nega a arrecadação diminuta do ITR face aos demais tributos de competência da União, porém é importante ter-se em mente que a função principal do ITR não é a arrecadação por si só, mas desestimular a manutenção de propriedades rurais improdutivas, em flagrante conflito com a Política Agrária Nacional e a função social da terra.
Com o advento da Emenda Constitucional 42/2003, somada ao inchaço da máquina pública e as dificuldades de arrecadação de parcela significativa dos municípios, o ITR, especialmente nos últimos anos, passou a ser enxergado como uma fonte atraente de recursos, em completo descompasso com o objetivo vislumbrado pelo constituinte originário. Se a ideia é repensar as formas de fiscalização, cobrança e arrecadação, talvez o melhor caminho – e mais custoso, do ponto de vista político – seja a revisão do pacto federativo e a alteração do Texto Constitucional.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Vide <a href="https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dadosabertos/receitadata/arrecadacao/arrecadacao-itr-por-municipio/arrecadacao-itr-por-municipio">https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dadosabertos/receitadata/arrecadacao/arrecadacao-itr-por-municipio/arrecadacao-itr-por-municipio</a>. Consulta em 30/05/2022.

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JOTA

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