Opinião e Análise

Maristela Barbosa Santos

A separação das funções do Estado em poderes distintos e harmônicos constitui-se em mecanismo de limitação e controle da atuação de seus agentes. Assim, resta fixado no artigo 2º da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao">Constituição Federal de 1988</a> a divisão do Estado brasileiro nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Para além de cada função típica, os Poderes possuem a atuação de controle uns sobre os outros através de diversos instrumentos dispostos ao longo da própria constituição, dentre estes se encontra a instituição dos Tribunais de Contas, órgão de assessoramento do Poder Legislativo, que exerce controle externo à atividade do Poder Executivo, com especial destaque para o julgamento das contas, conforme o disposto no art. 71 da Constituição Federal.
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No exercício de função fiscalizadora os <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tribunais-de-contas">Tribunais de Contas</a> podem aprovar, aprovar com ressalvas ou desaprovar as contas, além disso podem imputar débito, quando verificado prejuízo ao erário, e aplicar multa aos gestores responsáveis (art. 71, VIII e §3º, da CF/88).
Ao longo dos anos, estava consolidado entendimento da inocorrência da prescrição para fins de constituição e cobrança de débito em face de decisão do Tribunal de Contas, nos termos do art. 37, § 5º, da Constituição Federal. Ocorre, todavia, que tal questão restou submetida ao STF, o que acabou por modificar tal entendimento.
Inicialmente por meio do Tema 666<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, com trânsito em julgado em 31/08/2016, o STF assentou a prescritibilidade da ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil, ou seja, da pretensão executória.
Posteriormente no Tema 899<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, transitado em julgado em 05/10/2021, restou, novamente fixada a prescrição da pretensão executória.
A questão atinente a prescrição da pretensão punitiva somente restou analisada no MS 32.201/DF, que fixou a tese de que “a prescrição da pretensão punitiva do TCU é regulada integralmente pela Lei 9.873/1999, seja em razão da interpretação correta e da aplicação direta desta lei, seja por analogia”.
A questão da pretensão punitiva voltou a ser mencionada na ADI 5.509/CE, cujo trânsito ocorreu em 07/03/2022<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Em face dos referidos julgados o TCU acabou por emitir a Resolução TCU 344/2022, que “Regulamenta, no âmbito do Tribunal de Contas da União, a prescrição para o exercício das pretensões punitiva e de ressarcimento”.
Tal questão passou então a gerar repercussão no âmbito dos tribunais de contas dos estados. Neste sentido, vale destacar Nota Recomendatória Atricon-IRB-CNPTC-Abracom 2/2023<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> fixando diretrizes para reconhecimento da prescrição e da decadência em processos de controle externo, caso não haja previsão contrária em lei ou ato normativo próprio.
Em que pese tal orientação, o Tribunal de Contas de cada estado federativo, no exercício de sua autonomia, está disciplinando a matéria<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Com efeito, tal modificação da jurisprudência não veio acompanhada de uma modulação de efeitos e/ou regras claras sobre marcos temporais, de forma que todos os processos de prestação de contas em andamento acabaram por ser atingidos pelo novo entendimento, o que na prática está gerando insegurança jurídica, além de prejuízo ao erário.
Em relação ao prejuízo ao erário, somente no âmbito da União, há notícias que no TCU o “valor em débitos e multas passou de R$ 2,3 bilhões para R$ 268 milhões após resolução do TCU que fixou prazos e já foi aplicada em 400 casos”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Observe-se que, até a edição da nova orientação jurisprudencial o ente estatal tinha justa expectativa de ressarcimento dos eventuais danos ao erário independente do transcurso do tempo. E mesmo quando se iniciou a alteração da jurisprudência, esta se referia à pretensão executória, ou seja, o prazo para a cobrança da dívida após a constituição do título, assim podia o Tribunal de Contas imputar débito, independentemente do tempo que levou a tramitação do processo de prestação e julgamento das contas, todavia, uma vez constituído o título executivo, havia o prazo de 05 (cinco) anos para efetivação da cobrança dos valores devidos.
A justa expectativa do Estado de se ver ressarcido de débito apurado em sede de prestação e julgamento de contas, independente do transcurso do tempo, não restou considerada quando da decisão do STF, em que pese a modulação de efeitos das decisões que modificam jurisprudência ser a orientação do próprio tribunal.
Com efeito, o próprio STF no julgamento do ARE 951533 A GR-SEGUNDO / ES fixou que a modificação na jurisprudência do STJ e dos TRFs, em matéria de prescrição, não pode retroagir para considerar prescrita pretensão que não o era à época do ajuizamento da demanda<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Na oportunidade também fora destacado a existência de precedente no STF consistente no julgamento do RE 566.621/RS, oportunidade em que a ministra relatora Ellen Gracie asseverou que a redução de prazo prescricional não poderia “retroagir para fulminar, de imediato, pretensões que ainda poderiam ser deduzidas no prazo vigente quando da modificação legislativa”, pois haveria violação do princípio da segurança jurídica, cujo conteúdo abrangeria não só a proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, mas também o “resguardo da certeza do direito, da estabilidade das situações jurídicas, da confiança no tráfego jurídico e do acesso à justiça”.
Destaque-se ainda o julgamento da ADPF2 48/DF, reiterando que o princípio da segurança jurídica e os preceitos da lealdade, da boa-fé e da confiança legítima, que impedem a aplicação retroativa de nova orientação jurisprudencial sobre determinado caso.
O ministro Ricardo Lewandowski destacou que “toda mudança de jurisprudência que implique restrição a direitos dos cidadãos – como é o caso da definição do termo inicial do prazo prescricional – deve observar, para sua aplicação, uma regra de transição para produzir efeitos, levando em consideração comportamentos então tidos como legítimos, praticados em conformidade com a orientação prevalecente na época” (g.n.).
Não é demais ressaltar que as manifestações do STF se coadunam com o quanto disposto no art. 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (inserido pela Lei 13.655, publicada em 25 de abril de 2018) ao estabelecer que a decisão que alterar interpretação de lei, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quanto à sua aplicação<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
O princípio da segurança jurídica somente pode ser respeitado com a criação de direito intertemporal, de forma que o prazo prescricional para os processos já em curso ou há de ser contado tendo como marco a expedição da decisão ou então somente se aplicaria para as situações fáticas constituídas após sua edição.
Tal medida, possibilitaria à Administração organizar e racionalizar sua atuação, de forma a não impor prejuízo ao erário público, bem como a imputação de responsabilidade pela eventual ocorrência ao agente público responsável.
Cabe ainda destacar as controvérsias ainda existentes sobre a própria aplicação da referida prescrição, tais como a unicidade ou pluralidade de causas interruptivas, bem como a aplicação das regras de prescrição de direito civil ou de direito penal e, por fim, e mais relevante, considerando que a decisão do STF fixou que quando se tratar de ato de improbidade continuando sendo imprescritível, como se dará tal procedimento: deve o Tribunal de Contas verificar se há ou não improbidade?
Basta que algum legitimado tenha ingressado com ação civil de improbidade para que o tribunal possa imputar débito? Ou terá que aguardar o julgamento? E se a ação de improbidade for interposta depois do tribunal ter extinto o processo de contas por prescrição? Desarquiva o processo? Ou temos que entender que no Tribunal de Contas tudo será prescritível e a questão da improbidade deverá ser apurada em instância diversa e não terá nenhum efeito sobre a atuação da Corte de Contas?
Teremos que aguardar os próximos capítulos, mas o que há de certo é que a proteção ao erário público restou fragilizada e alguns milhões de reais não serão mais possíveis de recuperar, e lá vamos nós correr atrás do prejuízo.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> "É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil."
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ. IMPUGNAÇÃO AOS ARTS. 76, §5º E 78, §7º, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E PARCIAL DA LEI ESTADUAL Nº 12.160/1993. NORMAS QUE ESTABELECEM A OBSERVÂNCIA, PELOS TRIBUNAIS DE CONTAS DOS MUNICÍPIOS E DO ESTADO DO CEARÁ, DOS INSTITUTOS DA PRESCRIÇÃO E DA DECADÊNCIA NO EXERCÍCIO DE SUAS COMPETÊNCIAS. INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO MODELO FEDERAL DE ALCANCE DA CLÁUSULA DE IMPRESCRITIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 35-C, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO II. OFENSA AO ART. 75, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PARCIAL PROCEDÊNCIA. 1. Na ausência de regra expressa para o modelo federal, tem os Estados competência para suplementar o modelo constitucional de controle externo. 2. O Plenário deste Tribunal consolidou a interpretação do alcance da cláusula constitucional da imprescritibilidade no modelo federal como limitada aos “atos dolosos de improbidade administrativa”. É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas: RE 636.886, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 24.06.2020, Tema n.º 899 da Repercussão Geral. Inocorrência de violação à simetria. 3. Pontualmente, a previsão segundo a qual o prazo prescricional inicia-se a partir da data de ocorrência do fato não encontra abrigo no ordenamento constitucional, nem nas leis federais de regência. Precedentes. Declaro a inconstitucionalidade do inciso II do parágrafo único do art. 35-C da Lei do Estado do Ceará 12.160, de 1993. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente. (ADI 5509, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 11-11-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-036 DIVULG 22-02-2022 PUBLIC 23-02-2022)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em <a href="https://atricon.org.br/wp-content/uploads/2023/04/Nota-Recomendatoria-Conjunta-n-022023.pdf">https://atricon.org.br/wp-content/uploads/2023/04/Nota-Recomendatoria-Conjunta-n-022023.pdf</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Por exemplo: Resolução nº 074, de 31/08/2023 do Tribunal de Contas do Estado da Bahia; Lei Complementar n° 819/2023 do Estado de Santa Catarina; Lei Complementar n° 752/2022 do Estado do Mato Grosso; a Deliberação - SEI Nº 0018205/2023-46 do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo; a Resolução Administrativa Nº 03/2023 do Tribunal de Contas do Estado do Ceará.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/07/condenacoes-de-gestores-publicos-despencam-apos-regra-de-prescricao.shtml?fbclid">https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/07/condenacoes-de-gestores-publicos-despencam-apos-regra-de-prescricao.shtml?fbclid</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Vale destacar parte do voto do ministro Dias Toffolli que resultou vencedor:
Como bem salientou o Ministro Relator Gilmar Mendes, os marcos jurígenos para a contagem do prazo prescricional do direito do contribuinte estão dispostos no Código Tributário Nacional. Todavia, acertadamente ou não, o Superior Tribunal de Justiça, na interpretação dessas normas, criou um marco inicial de prazo prescricional diverso, qual seja, a data da declaração de inconstitucionalidade do tributo pelo STF em controle concentrado ou difuso. Nesse cenário, a aplicação imediata da nova jurisprudência do STJ fixando novos marcos prescricionais a partir de 2004 significou aplicar-se retroativamente a nova regra de contagem do prazo prescricional às pretensões já ajuizadas em curso, com ofensa, em meu entender, ao primado da segurança jurídica.(g.n)
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

tcu controle publico

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JOTA

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