Opinião e Análise

Lana Borges

O Estado Social Democrático de Direito, instituído pela Constituição de 1988, é uma estrutura política que se compromete com a materialização de ações públicas em benefício de grupos mais vulneráveis. Entre elas deve haver aquelas que se direcionam às mulheres e às meninas, promovidas para desmistificar, de modo efetivo, o papel social pejorativo atribuído a tudo que é feminino.
Respostas que lhes resguardem a entrada, a ascensão e a permanência no mercado de trabalho em configurações de salário e de cargo análogas às dos homens, por exemplo, para além de políticas públicas que levem em conta as suas características biológicas, como a maternidade, o ciclo menstrual, o climatério e a menopausa.
Entre tais resoluções estatais, a tributação é, sem dúvida, uma das mais palpáveis para a busca dessa minimização de distinções socioeconômicas de gênero.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1] </a>Como destaquei em texto anterior publicado no JOTA, é possível considerar a questão: “o que os tributos têm a ver com possíveis abrandamentos das desigualdades sociais e econômicas de gênero?” No mínimo, muito.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
A estreita relação entre a diminuição das desigualdades de gênero e o uso da tributação é reconhecida diuturnamente. Entretanto, naqueles modelos de alterações constitucionais e legislativas que se apresentavam originalmente, <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158930">PEC 45/2019</a> e 110/2019 e o PL 3887/2020, resultados de anos de busca por uma reforma do sistema tributário nacional, não havia uma só menção à diminuição da discrepância de gênero. A persistência e a excelência dos trabalhos acadêmicos de um grupo de mulheres tributaristas mudaram, felizmente, esse cenário.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Não apenas uma <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/reforma-tributaria?non-beta=1">reforma tributária</a> era aguardada por anos, mas sim uma revolução no sistema tributário, da perspectiva constitucional e legal, que pudesse implementar a justiça fiscal, contida na justiça social, mais adequada para atender os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º da CF).
A <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc132.htm">Emenda Constitucional 132/2023</a> traz, de modo explícito, duas menções a dispositivos diretamente ligados às mulheres. A primeira delas, mais comumente citada, a previsão do art. 9º relativa ao regime diferenciado de tributação, que abrange o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS - art. 156-A) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS - art. 195, V), quanto aos produtos de cuidados básicos à saúde menstrual.
A saúde menstrual é majoritariamente atrelada a mulheres e meninas, embora, de uma perspectiva mais ampla, diga respeito a pessoas que menstruam. É importante ressaltar que a saúde menstrual é uma questão nacionalmente relevante, já que o Brasil possui hoje uma população composta por 51,5% de mulheres. De acordo com o censo de 2022, são 6 milhões de mulheres a mais que homens no país.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
A pobreza menstrual é, sem dúvida, a maior de todas as perversões das desigualdades de gênero a ser interrompida pelas políticas públicas e a ser combatida por todas as vias, envolvendo toda a sociedade, os setores público e privado, sob pena de se perpetuar mais uma forma de discriminação de meninas e mulheres, que deixaram de estudar e de trabalhar, aprofundando a distância que as separa dos homens.
O outro dispositivo da Emenda Constitucional que claramente remete a reforma tributária às discussões de gênero é a combinação resultante entre os §§ 10 e 11 do mesmo art. 9º. Os regimes diferenciados de tributação devem ser submetidos a avaliação quinquenal. De acordo com o § 11 do art. 9º, a referida análise deverá levar em conta o impacto da legislação tributária na promoção da igualdade entre homens e mulheres.
É o que diz literalmente o comando constitucional. Há uma diretriz de transformação de máxima clareza. A necessária avaliação da relativização das alíquotas, ou seja, o regime de tributação diferenciado deve observar o seu impacto na promoção da isonomia de gêneros. Deverá, e não poderá, é o que diz a EC 132/2023.
Como aponta Flávia Biroli, “o ‘matriarcado da miséria’ é feito de exclusão, racismo, sexismo e, apesar disso, de resistências no cotidiano e na ação política coletiva”.  A revolução do sistema tributário, no que diz respeito a gênero, não se resume aos dois temas que destacamos acima.
Há pelo menos mais três temáticas de transmutação social relacionadas a gênero contidas no texto da EC 132/2023, de máxima relevância, que precisam ser apontados e estudados a fundo, para que sejam concretas as alterações futuras a serem exigidas pela comunidade jurídica e pela sociedade civil.
A primeira delas, a criação da Cesta Básica Nacional de Alimentos, prevista no art. 8º, que considerará a diversidade regional e cultural da alimentação do país e garantirá uma alimentação saudável e nutricionalmente adequada. Diminuir os preços dos alimentos, por meio da fixação de alíquota zero, é uma forma de repercutir nos orçamentos das famílias brasileiras e mais diretamente nos orçamentos das mulheres, seja porque são em um percentual muito maior as chefes dos arranjos familiares com apenas um responsável financeiro, seja porque concentram seus gastos em despesas de cuidados, como a alimentação.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Outra alteração relevante foi a previsão da devolução de tributos, tanto para o IBS, quanto para a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cbs">CBS</a>, a pessoas físicas de baixa renda, usualmente chamado de cashback. Trata-se de mecanismo aplicado em outros países e que tem repercutido de forma positiva, tendo o potencial para impactar diretamente as mulheres. O benefício é voltado a consumidores de baixa renda e será obrigatório, nos termos do § 13 do art. 156-A, nas operações de fornecimento de energia elétrica e de gás liquefeito de petróleo.
Conjugando, então, os índices de pessoas beneficiadas, o quantitativo crescente de mulheres chefes de família e os tipos de gastos realizados por elas, é possível afirmar que a medida de devolução de tributos, que tem por finalidade precípua a redução das desigualdades de renda, atingirá de modo ainda mais profundo as mulheres, sendo por tanto também um ferramental na construção de um sistema tributário que por finalidade a supressão das disparidades socioeconômicas entre homens e mulheres. Mais uma vez, é notório que tributação e gênero são assuntos interligados e que o sistema tributário é mecanismo hábil à busca de equidade.
A inserção de princípios no Sistema Tributário Nacional e sua estreita conexão com as desigualdades de gênero é, igualmente, um marco de transformação normativa a ser sublinhado. Isso porque para além da simplicidade, transparência, cooperação e defesa do meio ambiente, há um quinto princípio, a justiça tributária.
A tributação é atuação estatal a exercer limitação à propriedade com o intuito de arrecadar tributos e, em paralelo, fazer a redistribuição dessas riquezas por meio da prestação de serviços públicos e desenvolvimento de políticas públicas. O papel da tributação é exatamente fomentar o atendimento das necessidades públicas, de modo direto ou indireto, estimular ou inibir comportamentos e buscar a amplificação da justiça e da igualdade na seara tributária.
A quinta temática que vincula tributação, gênero e reforma tributária, é a atenuação dos efeitos regressivos dos tributos. Em 2018, a arrecadação tributária foi constituída da seguinte forma: 44,74% da receita tributária eram oriundos da tributação sobre bens e serviços e apenas 21,62% provinham da receita tributária sobre a renda.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> A regressividade é sistemática de incidência tributária abertamente criticada.
A abismal desigualdade socioeconômica é característica marcante da sociedade brasileira e, por isso, a tributação consubstanciada na regressividade, fincada no consumo, intensifica o fosso entre pessoas pobres e ricas. Diante de todas essas questões, é possível inferir que a decisão de que a reforma tributária tivesse como ponto de partida os tributos sobre o consumo é minimamente adequada.
A introdução do § 4º na redação do art. 145, impõe o afastamento dos efeitos regressivos da tributação àquelas pessoas que irão elaborar novos textos normativos, bem como àquelas que irão interpretá-los. A obrigação constitucional, no sentido de que a elaboração, a interpretação e a execução das normas tributárias se deem de modo a atenuar os efeitos regressivos, é uma mudança mais do que adequada e necessária a ser seriamente enfrentada pela reforma tributária brasileira.
É preciso perceber a reforma tributária como o início de uma transformação profunda para além do sistema tributário. Ela deve ser estudada e materializada, e esse processo de adaptação será árduo, de modo a efetivamente servir para a igualdade entre homens e mulheres.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BORGES, Lana. Tributação e gênero: políticas públicas de extrafiscalidade e a luta pela igualdade. Belo Horizonte: Fórum, 2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BORGES, Lana. Benefícios fiscais e a inserção de mais mulheres no mercado de trabalho. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/artigos/beneficios-fiscais-insercao-mais-mulheres-mercado-de-trabalho-20122021">https://www.jota.info/artigos/beneficios-fiscais-insercao-mais-mulheres-mercado-de-trabalho-20122021</a>. Acesso em: 11 ago. 2024.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> MENEZES, Luiza Machado de O. Memória, Afeto e Esperança: nossa História de Luta pela Inclusão da Perspectiva de Gênero na Reforma Tributária (Emenda Constitucional n. 132/2023). Revista Direito Tributário Atual v. 56. ano 42. p. 731-751. São Paulo: IBDT, 1º quadrimestre 2024.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Panorama do Censo 2022. Disponível em: <a href="https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/index.html">https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/index.html</a>. Acesso em: 03 ago. 2024.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS APLICADAS (IPEA). Retrato das desigualdades de gênero e raça. 2017. Disponível em: <a href="https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_chefia_familia.html">https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_chefia_familia.html</a>. Acesso em:  04 ago. 2024.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BRASIL. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros. Carga Tributária no Brasil 2018 – Análise por Tributos e Bases de Incidência. Março de 2020. Disponível em: <a href="https://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf">https://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf</a>. Acesso em: 11 ago. 2024.

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