Bruno Renzetti

Durante as audiências públicas realizadas no Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>) para decidir a constitucionalidade ou não do artigo 19 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/marco-civil-internet">Marco Civil da Internet</a>, me chamou a atenção a participação de Lincoln Macário, representante da Associação Brasileira de Comunicação Pública. Em sua manifestação, Macário mencionou a dificuldade de usuários checarem informações recebidas em plataformas digitais específicas, devido ao custo do pacote de dados para o usuário. Assim, este fica preso àquela plataforma que possui tráfego subsidiado, prática conhecida como zero-rating. Esta dinâmica, muito presente no Brasil, parece contribuir para a propagação de fake news e conteúdos “controversos”, por assim dizer.
A realidade econômica brasileira propicia a expansão de tráfego subsidiado das principais plataformas digitais. Em países nos quais o preço por gigabyte de dados móveis é menor, mas a renda média também é menor, um plano de dados móveis representa um sacrifício importante no orçamento de uma pessoa. É incomum que pessoas que tais países – como o Brasil – paguem por planos com pacotes de dados ilimitados. No Brasil, o preço por gigabyte está em torno de US$ 1,01, menor que os US$ 8 dos Estados Unidos. Todavia, somente 6% dos brasileiros possuem planos ilimitados. A maioria possui planos com franquia de dados limitada.
Os números são importantes para demonstrar como países e comunidades com menos recursos são mais suscetíveis aos efeitos perversos das políticas de zero-rating. Operadoras de telefonia sabem que os consumidores gastam a maioria de seu tempo online navegando em poucos aplicativos específicos. Para atrair mais consumidores, as operadoras oferecem que a navegação em tais aplicativos seja de graça: isto é, não será deduzida da franquia de dados do usuário. Esta estratégia é particularmente apelativa para consumidores que utilizam planos pré-pagos: eles tenderão a utilizar somente aqueles aplicativos com tráfego patrocinado, dado o custo dos dados em utilizar outra plataforma. 
Existe uma clara dimensão concorrencial desta estratégia de negócios, a qual, inclusive, já objeto de análise pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a>). Aqui, entretanto, preocupa-se em apontar os potenciais danos não econômicos das políticas de tráfego patrocinado.
Como dito, populações de países mais pobres estão mais sujeitas aos efeitos negativos do zero-rating. Em tais países, o celular se tornou o principal ponto de acesso a Internet. A pesquisa PNAD Contínua de 2019 demonstrou que 83% dos lares no Brasil possuíam acesso à internet. Destes, 99,5% possuíam o celular como o instrumento de acesso. 
Em países nos quais o principal meio de acesso à internet é o telefone celular, exista uma falta de infraestrutura para acesso à internet (pontos públicos de wi-fi, por exemplo) e o custo dos dados móveis represente uma parcela significativa do orçamento do cidadão, políticas de tráfego patrocinado possuem um papel primordial na disseminação de informação e conteúdo.
Redes sociais se tornaram a fonte primária de informações para muitos usuários. Facebook e WhatsApp são particularmente importantes – e um campo fértil para a disseminação de fake news. Se uma pessoa não é capaz de pagar um plano de dados que lhe permita acessar fontes confiáveis e verificadas de informações, ela somente terá acesso ao que for compartilhado nas redes que não cobram por seu acesso. 
Tomemos como exemplo o “apagão” de Facebook, WhatsApp e Instagram em 4 de outubro de 2021. À época, eu estava estudando nos Estados Unidos e percebi que meus colegas oriundos de países em desenvolvimento (Índia, Colômbia e Filipinas, por exemplo) foram muito mais afetados do que aqueles de países desenvolvidos. A impressão que passou foi que estes últimos conseguiram mais rapidamente mudar para outra plataforma – Signal, Telegram ou iMessage – para se comunicar com seus contatos, enquanto aqueles estavam presos (locked-in) ao WhatsApp. Isso pode ter ocorrido devido à dificuldade de se aderir a outra plataforma que cobraria pelo tráfego de dados, ao contrário do WhatsApp, que possui zero-rating em muitos países em desenvolvimento. Os usuários, assim, possuem maiores custos para alternar (multihome) entre plataformas. E ainda que um usuário específico possa suportar os gastos para tanto, de nada adiantará, pois a maioria de seus contatos não estará disponível.
Uma <a href="https://idec.org.br/arquivos/pesquisas-acesso-internet/idec_pesquisa_internet-movel-pelas-classes-cde.pdf">pesquisa</a> conduzida em 2021 conjuntamente pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/IDEC">IDEC</a>) e pelo Instituto Locomotiva trazem dados que escancaram ainda mais a importância da internet móvel em famílias das classes C, D e E. Todavia, a falta de acesso à infraestrutura de internet – conexões wi-fi – tornam tais usuários “reféns” da conexão 3G/4G, principalmente através de planos pré-pagos, com franquia limitada de dados. De acordo com o relatório, “no segmento específico de usuários de pré-pago, a internet só esteve disponível 21 dias e, na classe D e E, por 19 dias". Em decorrência do fim da franquia, os usuários tinham seu acesso à internet via 3G/4G bloqueado, podendo acessar somente aplicativos de tráfego ilimitado – isto é, aqueles sob acordos de zero-rating. A conclusão aqui é clara: usuários passam 1/3 de cada mês desconectados.
Para combater esta situação, operadores de telefonia deveriam ser submetidos a um trade-off regulatório. Operadoras que celebram acordos de tráfego patrocinado com redes sociais também deveriam ser obrigadas a patrocinarem o acesso a fontes oficiais do governo ou páginas de agências checadoras de notícias. Por exemplo, durante o ápice das eleições presidenciais no Brasil, as operadoras que se utilizam das políticas de zero-rating deveriam também fornecer acesso gratuito à página oficial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
As reportagens do Facebook Files publicadas em 2021 pelo Wall Street Journal expuseram o padrão de conduta do Facebook em não evitar danos a seus usuários, mesmo quando a companhia possuía informações suficientes sobre os perigos e poderia ter agido de maneira diferente. Ao juntarmos os efeitos do apagão de 2021 às revelações do Facebook Files, parece ser claro que países em desenvolvimento são mais propensos aos efeitos destrutivos oriundos do abuso de poder de mercado de plataformas digitais. Políticas de zero-rating somente reforçam tal posição.
É necessária atuação conjunta de entes governamentais e atores do terceiro setor, preocupados com a restrição de direitos que o zero-rating pode causar. Nesse sentido, a <a href="https://teletime.com.br/26/01/2023/entidades-pedem-que-ministerio-da-justica-entre-no-debate-sobre-zero-rating-na-telefonia-movel/?amp">iniciativa</a> da Coalizão Direitos na Rede em buscar diálogo com o Ministério da Justiça e com a Secretaria de Comunicação Social merece destaque e tem o potencial de colocar o tema na agenda do governo federal.
A estratégia regulatória para combater os efeitos indesejados do zero-rating deve levar em consideração não somente seus efeitos anticompetitivos, mas também danos não econômicos como a facilitação da disseminação de desinformação. Mercados concentrados com grandes barreiras à entrada representam um risco para a população que utiliza o celular como seu único meio de acessar a internet e as redes sociais como a principal – se não a única – forma de obter informações.

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JOTA

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