Considerando o movimento dos últimos anos, em que vemos as sociedades empresárias darem cada vez mais valor aos chamados programas de Compliance, com o objetivo de atender aos melhores critérios de Governança Corporativa, a figura do whistleblower se tornou conhecida e, também, por demais controvertida.
No mercado de capitais, preocupa-se cada vez mais com índices que se relacionam com a maior transparência das informações fornecidas, à sustentabilidade, à ética e, obviamente, à prevenção de riscos. Nesse sentido, vemos o crescimento da importância que é dada, dentre outros, às rotinas de Compliance e de ESG[1] – índice que relaciona critérios de Environmental, Social and Governance, permitindo que investidores busquem Companhias mais sustentáveis para alocar seus recursos.
Os programas de Compliance podem ser definidos como os procedimentos instituídos no âmbito das Corporações, públicas ou privadas, visando ao estrito cumprimento de toda a normativa, seja ela legal ou interna. O escopo é fazer com que a legislação existente e o regramento da própria Companhia sejam conhecidos e observados por todos os seus colaboradores, administradores, e, também, por seus stakeholders. Essa observância torna os procedimentos cotidianos da Companhia mais hígidos, idôneos e transparentes, evitando desvios éticos e práticas ilícitas, como atos de corrupção.
Na melhor estrutura dos programas de Compliance, identificamos diversas obrigações a serem observadas, como as impostas pela denominada Lei Sarbanes-Oxley, uma resposta conferida pelo Governo Estadounidense a diversos escândalos envolvendo Companhias de grande porte, causando impactos de grande monta ao mercado financeiro local. A famosa “SOX” veio com o objetivo de restaurar a confiança dos investidores, e, com isso, agregar valor às Companhias por meio da alocação dos recursos, tornando, então, viável, o mercado de capitais.
As Companhias Abertas são aquelas que negociam valores mobiliários de sua emissão no mercado, conforme definição trazida pelo artigo 4º, Lei n° 6.404/1976. Por elas buscarem recursos no mercado de capitais, sobre elas incide maior regulamentação, visando a manter hígido o funcionamento do mercado financeiro, por meio da proteção de seus investidores, sejam os players mais qualificados, sejam aqueles que investem em títulos como fonte de renda alternativa. Estas Companhias, então, são obrigadas a fornecerem maiores informações e a seguirem procedimentos mais complexos durante a sua rotina operacional.
Estas espécies de Companhias são listadas na B3 – Brasil, Bolsa e Balcão S.A., em segmentos de listagem diversos, a depender, também, das práticas de Governança Corporativa que são adotadas. O que nos interessa mencionar depois do escrutínio destas informações são as previsões relacionadas aos programas de Compliance para aquelas Companhias que são listadas no segmento do Novo Mercado, reservado para as entidades que atendam aos melhores critérios de Governança Corporativa do mercado de capitais, sob pena de seu descredenciamento. Podemos encontrar no Regulamento do Novo Mercado as previsões contidas nos artigos 24, 31, II, e 68, II, c.
Consideramos que um dos requisitos essenciais para que o programa de Compliance dentro das Companhias tenha êxito é justamente a instalação de um Canal de Denúncias, o que se relaciona diretamente à figura do whistleblower.
O que é, então, a figura do whistleblower? O termo é oriundo da expressão blow the whistle” e é também denominado como o “informante do bem”. Seu objetivo é alertar, dentro do âmbito de uma Companhia, as pessoas competentes, de condutas que estejam em desconformidade com a legislação e/ou com os normativos internos da entidade.
Perceba que para essa postura proativa, não é necessário que o indivíduo que venha a atuar como informante tenha participado efetivamente da conduta, bastando que dela venha a ter conhecimento.
É importante, desde já, a menção relacionada ao grande estigma que a figura do whistleblower carrega: é o indivíduo que estaria sempre monitorando o passo de seus pares e esperando o momento mais oportuno para, por meio de denúncias, apontar irregularidades e falhas. Tal estereótipo deve ser extirpado e substituído pelo de uma figura com a qual o Estado conta com o auxílio daqueles que melhor conhecem o business de cada Companhia em que atua. Por outro lado, a colaboração entre os funcionários deve ter como finalidade a melhoria contínua dos processos e fluxos, que, obviamente, trará repercussões ao mercado em geral e a todos os setores da sociedade - econômico, político e social.
Com o estigma, vem, talvez, a maior preocupação em relação aos informantes, qual seja, como manter a sua segurança e protegê-los de ataques e retaliações? Como vimos anteriormente, ainda que timidamente, porque aplicável somente no âmbito da Administração Pública, o Pacote Anticrime tentou conferir maior segurança à figura, normatizando a sua proteção.
São inúmeros os normativos que trazem previsões relacionadas ao whistleblower e, também, ao Canal de Denúncias, dentre eles: o Código de Processo Penal; a Lei de Contravenções Penais (artigo 66, I, DL 3.688/1941); a Lei n° 9.613/1998, que trata dos crimes de lavagem de capitais; a Lei n° 9.807/1999, que fixou diretivas para a proteção a vítimas e testemunhas de crimes, que estejam sendo coagidas ou ameaçadas por terem colaborado com a investigação policial ou com o processo penal; a Lei n° 12.850/2013, que define o crime de organização criminosa, e que, além de todo o regramento a ser seguido em delitos desta natureza, prevê a colaboração premiada, com a possibilidade de o magistrado, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, a diminuição da pena ou, ainda, a substituição da pena para aquele que tenha aceitado colaborar com as investigações, de maneira efetiva e voluntária; a tão discutida Lei Geral de Proteção de Dados, Lei n° 13.709/2018, que, em seu artigo 50, determina aos controladores ou operadores de dados a formulação de regras e procedimentos que possibilitem reclamações relativas à proteção de dados pessoais, bem como o estabelecimento de medidas de Compliance; e, por fim, talvez a maior modificação em relação ao assunto de whistleblower trazida pelo Pacote Anticrime, qual seja, a feita na Lei n° 13.608/2018, que traz o regramento sobre o “serviço telefônico de recebimento de denúncias e sobre recompensa por informações que auxiliem nas investigações policiais.” Trata-se do “Disque-Denúncia”.
Antes das modificações promovidas pela Lei n° 13.964/2019, era autorizado que os entes federativos estabelecessem os serviços de Disque-Denúncia, além de criarem critérios para oferecimento de recompensas por informações que tenham sido úteis para a investigação de crimes e para apuração de ilícitos administrativos ou quaisquer atos lesivos ao interesse público.
Com a reforma operada pelo Pacote Anticrime, podem ser destacadas duas grandes alterações, quais sejam: a instalação de ouvidorias no serviço público e a adoção de mecanismos para que seja efetivada a proteção integral do whistleblower. Novamente, frisamos que o Pacote Anticrime, na temática, significou o grande marco na tentativa de normatizar e conferir a maior proteção ao informante.
Apesar de a Lei n° 13.964/2019 determinar, no âmbito das ouvidorias, a modalidade de confidencialidade do informante (modalidade de encaminhamento de informações, junto com o anonimato) – veja que no âmbito de sociedades privadas, o programa de compliance pode escolher quaisquer dos critérios, ou, ainda, combiná-los-, ressaltamos que o próprio regramento busca mitigar eventual constrangimento que o indivíduo possa vir a sofrer quando ponderar sobre realização da denúncia, já que prevê que sua identidade somente será revelada em caso de relevante interesse público ou concreto para apuração dos fatos, e, ainda assim, mediante comunicação prévia e com sua concordância.
A Lei n° 13.608/2018 versa, ainda, sobre a sistemática de recompensa, que poderá ser fixada no montante de até 5% (cinco por cento) do valor recuperado, quando as informações fornecidas permitirem a recuperação do produto de crime, além da previsão de outros mecanismos de proteção contra ações ou omissões praticadas em retaliação ao exercício do direito de relatar. Isso o que dispõe o artigo 4º-C da lei, que, apesar de ser direcionada para a Administração Pública, acreditamos que servirá como guia para o aperfeiçoamento de programas de Compliance nas sociedades de direito privado.
Trazendo a discussão do whistleblower e da necessidade do estabelecimento de Canal de Denúncias para o êxito de programas de Compliance no ambiente corporativo, o Regulamento do Novo Mercado traz, em seu artigo 31, a obrigação das Companhias Abertas de preverem o mecanismo, em conjunto com medidas que evitem a retaliação daqueles que participem com informações.
Em nossa opinião, andou bem o Regulamento do Novo Mercado. Levando em consideração que se trata de segmento de listagem reservado às Companhias que possuem as melhores práticas de Governança Corporativa, a existência do Código de Ética e de Conduta, com os valores e princípios que são caros à entidade, além de Políticas internas claras e específicas, tratando, inclusive, dos procedimentos de Compliance e do Canal de Denúncias, é essencial.
Além da maior segurança jurídica conferida, a existência destes documentos permite também: (i) maior transparência e mais informação para os investidores que injetarão recursos na Companhia – dentro da ótica atual de que as sociedades empresárias que melhor atendem a índices sustentáveis contam com maior “popularidade” para a atração de recursos; (ii) conhecimento, por seus colaboradores, administradores e demais stakeholders, dos normativos que regem a entidade.
Sobre o tema, deixamos a reflexão de que grandes Companhias possuem enormes quantidades de Políticas, Procedimentos e Códigos internos, e que isso, assim como a quantidade de leis (boom legislativo), origina o efeito contrário ao do cumprimento, isto é, gera a cultura do desconhecimento – são tantos normativos a serem conhecidos e memorizados que, na verdade, nenhum deles passa a ser de domínio das pessoas que pretendem reger; e (iii) maior segurança no procedimento de investigação das denúncias, uma vez que todos saberão como elas serão tratadas, quais órgãos sociais e diretorias são responsáveis por suas avaliações, e o mais importante, quais sanções podem derivar da prática daquela determinada conduta – aqui, deverão ser consideradas, obviamente, as sanções já previstas em lei para ilícitos de ordem penal-, o que confere a legitimidade necessária para a aplicação da punição, já que somos adeptos, claro, à regência do princípio constitucional do devido processo legal, previsto no artigo 5°, LIV, CRFB88, em seus consectários lógicos do contraditório e da ampla defesa, ainda mais quando se milita na área penal.
É certo que os programas de Compliance passaram a permear a preocupação das grandes Companhias, assim como de entidades da Administração Pública. Trata-se de passo importante na tentativa de combater à corrupção. O que devemos ter em mente, todavia, é que o mecanismo para ser efetivo não basta ter previsão legal, mas sim contar com a colaboração daqueles que aplicam a normativa no mundo dos fatos.
Somado a isso, andou bem a legislação, ainda que apenas para o âmbito do Poder Público, quando tentou conferir a maior proteção àquele que colabora para a idoneidade dos procedimentos, uma vez que sem essa preocupação, o instituto, por melhor das intenções que tivesse, estaria esvaziado de utilidade prática, porque haveria o medo (e ainda há) de exposição combinada com retaliações.
O episódio 42 do podcast Sem Precedentes analisa as acusações de Donald Trump questionando a legalidade do pleito eleitoral nos EUA. Ouça:
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[1] Sobre o assunto, a B3 – Brasil, Bolsa e Balcão, em setembro do corrente ano, lançou, em conjunto com a Dow Jones, o índice S&P/B3 Brasil ESG, permitindo ao mercado de capitais alternativa de investimento em sociedades que apresentem melhores práticas sustentáveis. O índice “utiliza critérios baseados em práticas ambientais, sociais e de governança para selecionar empresas brasileiras para sua carteira.” Disponível em: <http://www.b3.com.br/pt_br/noticias/parceria-8AE490C973DB0F4F01746EC2BFF4523B.htm>. Último acesso em: 22/10/2020.