Daniel de Paiva Gomes

Eduardo de Paiva Gomes

Jardes Costa de Oliveira

Rodrigo Frota da Silveira

Das mudanças legislativas verificadas no âmbito do processo administrativo tributário nos últimos dois anos, uma das que mais se destaca, em razão da sua forte discussão doutrinária, é a que se refere à extinção do voto de qualidade no âmbito federal, inovação trazida pelo art. 28 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13988.htm">Lei 13.988/2020</a> – conhecida como Lei do Contribuinte Legal.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Como se sabe, da lavratura do auto de infração pela autoridade fiscal competente é facultada a apresentação pelo contribuinte de impugnação ou, conforme o caso, de manifestação de inconformidade, atividade derivada dos princípios do contraditório e da ampla defesa e do direito de petição.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias"><img class="aligncenter cta-tributos size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-tributos.png" width="688" height="688" /></a>
Com o julgamento pela Delegacia Regional de Julgamento (DRJ), caso a decisão lhe seja desfavorável, ao mesmo contribuinte é(era) dado interpor recurso voluntário, dando-se palco, sendo vencedor, a outro recurso, de ofício ou voluntário, esse último interposto pela Fazenda Nacional, cujo julgamento competirá ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Por vezes, quando do exercício de sua atividade julgadora, as Câmaras/Turmas a que referidos recursos são dirigidos, quiçá em face da natural pluralidade dos julgadores – representantes de contribuintes e do fisco –, <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> chegavam a um empate acerca de qual solução seria a mais adequada para a discussão da cobrança vergastada.
E era nesse contexto que se evocava, à luz do §9º do art. 25 do Decreto nº 70.235/1972, o instituto do voto de qualidade. De acordo com referido instituto os cargos de presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de vice-presidente, por representantes dos contribuintes.
Deparando-nos com a estrutura desse instituto, e a despeito da literalidade do dispositivo transcrito – cujos efeitos serão restritos à multa –, os contribuintes passaram a sustentar sua incompatibilidade (do voto de qualidade, aclaramos) em face do art. 112 do CTN, cujo conteúdo, traduzido no princípio in dubio pro contribuinte, afastaria a exação em razão da dúvida – gerada pela divergência entre os conselheiros – sobre a subsistência ou não do crédito tributário.
Sob a ótica da equidade, partindo-se das disposições normativas de apuração e aplicação das penalidades tributárias, haveria uma extensão desse entendimento – no sentido de que, na dúvida, dever-se-ia julgar favoravelmente ao contribuinte – também em relação ao crédito tributário (não apenas à multa), em função das incertezas quanto a sua ocorrência, ainda que tal raciocínio cognitivo não seja pacificado na doutrina,<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> por suscitar, num compasso interpretativo do princípio em foco, a possível dispensa do pagamento dos tributos, cujo alerta se faz no §2º do art. 108 do CTN.
Noutro giro discursivo, a própria existência do voto de qualidade encontraria fragilidades na sua existência já que, um “voto duplicado” de um mesmo julgador (agora na condição de presidente), dificilmente sofreria modificação, afrontando diretamente os princípios da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade, na forma do art. 5º, inciso LXXVII, da CF.
Nesse aspecto, Luís Roberto Barroso pontua que “atribuir dois votos a um mesmo indivíduo no âmbito de um órgão judicante colegiado viola a garantia constitucional da imparcialidade, corolário do devido processo legal porque (i) confere influência dupla a uma pessoa na decisão, maximizando o risco de parcialidades, em vez de minimizá-lo; e (ii) o segundo voto será necessariamente igual ao primeiro e não resultado de uma nova apreciação, livre e autônoma, dos elementos apresentados pelos interessados nos autos”.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Se, por um lado, há uma discussão quanto à possibilidade de ser estendida a interpretação do art. 112 do CTN para os casos em que se discute o próprio tributo (e não apenas infrações ou penalidades), por outro, reforça-se o debate acerca da imparcialidade do presidente do Carf ao deter o poder de votar duas vezes sobre uma mesma questão jurídica, pondo em xeque a observância dos princípios já mencionados na condução do processo tributário administrativo.
A mero título elucidativo, em estudo realizado pelo Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV (2016),<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> constatou-se que dos 347 votos de qualidade proferidos pelo presidente da CSRF (na condição de representante do Fisco) no período de corte dos estudos, nenhum dos casos teve desfecho favorável aos contribuintes, o que nos alerta para a subsistência da problemática do instituto.
Em nosso singelo sentir, como possível medida para mitigar o impasse decorrente do empate no julgamento de votos conflitantes, e sem a necessidade de eleição de um representante da Câmara – seja ele do Fisco ou não – para dar o voto de minerva, pensamos que, à luz da regra adotada na Suprema Corte dos EUA,<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> seria mais interessante a adoção da sistemática por meio da qual, em caso de empate, fica mantida a decisão recorrida, independentemente de ser ou não favorável ao contribuinte.
Todavia, nossas reflexões neste texto tomam outro viés, uma vez que, restou editada, através do art. 28 da Lei nº 13.988/2020, a regra contida no art. 19-E da Lei nº 10.522/02, cuja literalidade dispõe que, em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte, tudo de molde a por fim ao voto de qualidade no Carf a partir da sua publicação.
Essa mudança chegou ao Judiciário, com destaque, nesse sentido, às Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 6399, 6403 e 6415, cujo julgamento, com dois votos já prolatados, encontra-se suspenso desde junho, por conta do pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
Dos votos exarados, o primeiro, do ministro Marco Aurélio, apesar de relatar um possível óbice – ao que denominou abuso de poder parlamentar, conhecido como estratégia “jabuti” – ensejador da arguida inconstitucionalidade, formalizou o entendimento de que a extinção do voto de qualidade em si mesma, estando atrelada à adoção da regra in dubio pro reo, não violaria a estrutura normativa da CF.
Já o segundo voto, proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, reconhece, em síntese, a constitucionalidade da medida, embora abrindo margem, em sua parte final, para que, em caso de empate e decisão favorável ao contribuinte, poderá a Fazenda Pública ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário, como medida necessária para resguardar o equilíbrio das relações entre o Fisco e o contribuinte.
Essa parcela da ratio decidendi causou, o que é bem compreensível, grande alvoroço na comunidade jurídica, já que trouxe a debate questão antiga e muito controversa, agora sob coloração prática distinta: o cabimento de ação anulatória ajuizada pela Fazenda Pública – tema de que nos ocuparemos na parte II deste artigo.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E:
“Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Vide artigo 25 do Decreto nº 70.235/1972 que dispõe sobre a competência do Carf.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Vide artigo 23 do Regimento Interno do Carf - Portaria MF 343/2015.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Segundo Luiz Emygdio em Manual de Direito Tributário (Renovar,2009), p. 268.: “O dispositivo transcrito acima merece as seguintes observações. Primeira, refere-se à lei e não à legislação tributária, porque a matéria pertinente à definição de infrações e cominação de penalidades é privativa de lei (CTN, art. 97, V). Segunda, que a aplicação do dispositivo em tela não é cabente para qualquer lei tributária, mas somente para aquela que define infrações ou comine penalidades. Terceira, que o mesmo dispositivo só deverá ser aplicado no caso de existir dúvida no tocante a infrações ou cominação de penalidades. Quarta, que o dispositivo consagra o princípio geral de direito público, originário do direito romano: in dúbio pro reo.”
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “A atribuição de voto duplo a membro de órgão judicante colegiado e o devido processo legal”, Revista do IBRAC, v. 16, n. 1, 2008, p. 67.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> LEME, Cristiano; SANTI, Eurico Marcos Diniz de; HOFFMAN, Susy Gomes. O voto de qualidade em números. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/observatorio-carf-o-voto-de-qualidade-em-numeros-12082016">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/observatorio-carf-o-voto-de-qualidade-em-numeros-12082016</a>. Acesso em 03/10/2021.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Segundo a Suprema Corte estrangeira: “When there is a tie vote, the decision of the lower Court stands”.Vide <a href="https://www.uscourts.gov/about-federal-courts/educational-resources/about-educational-outreach/activity-resources/supreme-1">https://www.uscourts.gov/about-federal-courts/educational-resources/about-educational-outreach/activity-resources/supreme-1</a>

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JOTA

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