Esses dias acordei, abri o portal do processo administrativo eletrônico, e lá estava ela: uma minuta de edital e contrato administrativo cujo objeto era a aquisição de ração para flamingos. Quê?!? Pois é, não é algo que se vê todo dia...
Apesar disso, é uma compra simples, de valor baixo, sem muito mistério. Mas ela despertou minha atenção devido à minha absoluta ignorância sobre o tema. O que seria uma boa ração para flamingos? Será que aquela especificação técnica atendia às necessidades das simpáticas aves cor de rosa? E a quantidade? XXXkg, em embalagens de YYYkg cada, era mesmo o adequado? Ou será que essas especificações e quantitativos poderiam limitar a competitividade do certame?
Esse exemplo pitoresco me leva ao objeto destes comentários: a difícil vida dos advogados públicos, devido ao teor do art. 53 da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Sim! Uma pequena palavrinha que mudou tudo!
Vamos ao juridiquês: a Lei 8.666/93 previa, no art. 38, de forma muito discreta, que “as minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração”.
Mas a poderosa Lei 14.133/2021 vai além, ao estabelecer, no art. 53, que haverá “análise jurídica da contratação”. E, para não deixar nenhuma dúvida, no § 1º, I, determina que o parecer jurídico aprecie o “processo licitatório”.
Uma interpretação literal já revela que a análise jurídica, no novo marco legal, é bem mais ampla – e menos objetiva – do que o antigo cara-crachá de minuta de edital versus modelo padronizado.
E esta ampliação das competências da assessoria jurídica tem sua razão de ser: o simples cara-crachá já não basta.
Quando o ente licitante trabalha com os modelos padronizados de que trata o art. 19, IV, da Lei 14.133/2021, o cara-crachá é até desnecessário. E ele tampouco é suficiente para evitar problemas na contratação.
O exemplo dos flamingos é ilustrativo dessa situação: chegou para minha análise uma minuta de edital de pregão eletrônico para compra de bens, por registro de preços.
A minuta observava todas as cláusulas padronizadas previstas no modelo-padrão pré-aprovado pela Procuradoria-Geral do Estado, e estava devidamente acompanhada dos anexos (ata de registro de preços padronizada, contrato administrativo padronizado e diversas declarações que acompanham o edital). Por consequência, caso a análise jurídica se limitasse ao cara-crachá, a minuta estaria aprovadíssima.
Mas nós não precisamos de um advogado público para fazer este cara-crachá. Conforme bem colocou o professor Ronny Charles em evento realizado pela Advocacia-Geral da União, uma ferramenta de inteligência artificial faz esta análise de compatibilidade da minuta com o modelo pré-aprovado de forma muito mais eficiente e certeira do que um ser humano. Então, para que serve a análise jurídica?
É aí que chegamos na zona cinza. Aquela análise que vai além do cara-crachá, e que pode representar efetivos ganhos para a sociedade. Lembram das perguntas iniciais sobre o que seria uma boa ração para flamingos? Especificação técnica adequada, quantidade bem mensurada e forma de apresentação compatível com o usual no mercado são requisitos fundamentais para assegurar a competitividade do certame, princípio tutelado no art. 5º da Lei 14.133/2021.
Além disso, um preço de referência bem formulado leva à economicidade, que também está prevista no art. 5º. São esses os elementos que devemos observar, ao efetuar a análise jurídica da contratação.
Mas como um advogado vai opinar sobre tudo isso? Evidentemente, não temos capacidade técnica para avaliar a qualidade da ração de flamingo – poderíamos perguntar para as aves, mas tenho dúvidas se flamingos sabem escrever pareceres jurídicos.
E, devido à nossa incapacidade técnica para efetuar avaliação qualitativa, virou lugar comum nos pareceres jurídicos frases rebuscadas como “o dimensionamento do objeto é de responsabilidade exclusiva do gestor, não tendo esta análise jurídica o condão de chancelar as escolhas técnicas da Administração”.
Estas frases são essenciais, para adequadamente delimitar o escopo da análise jurídica. Contudo, não eximem o parecerista de ter um olhar jurídico sobre critérios técnicos de qualidade e quantidade. E os flamingos novamente têm muito a nos ensinar acerca deste olhar.
Sobre requisitos qualitativos, o advogado público deve analisar se o procedimento de compra foi instruído com elementos suficientes para justificar a razão da escolha daquele produto. Supondo-se que tenha sido requerida ração “premium”, por exemplo, há justificativa para esta solicitação? O olhar jurídico, aqui, se limita à existência – ou não – de fundamentação para as escolhas da Administração.
A análise da forma de apresentação do bem se submete a um olhar jurídico semelhante à dos requisitos qualitativos: a Administração realmente precisa de ração de flamingo em embalagem de 1kg? Por que razão a embalagem de 10kg – possivelmente mais barata – não atende às necessidades do órgão? É possível que a ração, após aberta, seja altamente perecível, o que justificaria embalagens menores. Mas isso deve estar demonstrado no processo de contratação.
Ainda no que toca à forma de apresentação, o olhar jurídico deve analisar a redação da especificação técnica: “embalagens de 995g” é um sério indício de direcionamento da licitação, ao passo que “embalagens de até 1kg” parece uma redação mais adequada, podendo ampliar significativamente a competitividade do certame.
Sobre requisitos quantitativos, por sua vez, o olhar jurídico pode ir muito além. Em compras recorrentes – como é o caso de ração para os flamingos do zoológico – o procedimento de compra deve ser instruído com uma retrospectiva do histórico de consumo, de forma a dar certeza ao gestor de que o quantitativo solicitado é compatível com o que efetivamente será consumido.
Aqui parece haver espaço para o poder regulamentar do ente público: esta análise de consumo deve tomar por base a execução do último contrato? Ou dos últimos dois anos? O estabelecimento de critérios objetivos, em ato normativo infralegal, certamente levará à adequada instrução do processo de contratação.
É claro que pode haver modificação na projeção de consumo, caso em que o gestor deve justificar o motivo pelo qual se afastou da média histórica. No nosso simpático exemplo, uma ninhada de bebês flamingos pode servir de fundamento para que o órgão solicite um quantitativo maior de ração. O relevante, para a análise jurídica, é que a justificativa esteja claramente prevista no processo administrativo.
Por fim, o olhar jurídico sobre o preço de referência tem alcance mais limitado: a análise jurídica deve observar se foram atendidos os requisitos de orçamentação do art. 23 da Lei nº 14.133/2021, devidamente regulamentado pelo ente licitante.
Não cabe ao advogado público refazer a pesquisa de preços, mas ele deve verificar se a metodologia definida pela própria Administração foi obedecida, no caso concreto.
Como se percebe, a Nova Lei de Licitações sofisticou a análise jurídica: passamos de “fiscais do modelo padrão” a “caçadores de limitações de competitividade e economicidade”. Vários desafios vêm com esta sofisticação. Mas, com um trabalho bem feito, a análise jurídica pode contribuir para que os flamingos recebam uma ração mais gostosa e, de preferência, mais barata!
P.S.: não havia nenhum erro na minuta de edital para compra de ração para flamingos, que passou em todos os testes do olhar jurídico. Que os flamingos tenham uma deliciosa refeição!
