Sandra Gonoretske

Me lembro exatamente desta discussão. Não lembro o ano, mas certamente, faz menos do que uma década. Um executivo da área de vendas de um Banco de Investimentos onde trabalhava me pedia para aceitar em caráter de exceção que prosseguíssemos com o cadastramento de uma subsidiária de uma grande empresa de capital aberto sem que a empresa entregasse a Ficha Cadastral e os Documentos Societários, exigidos pelo Banco Central. Em favor da empresa, o executivo me perguntava se eu tinha alguma desconfiança em relação ao caráter e lisura da empresa.
Naquela ocasião, nem me passava na cabeça que tal empresa, de grande porte e extremamente conhecida no Brasil e no mundo, estaria em alguns anos envolvida na Lava Jato.
Não era este o problema principal da discussão que tive naquele dia. Naquela ocasião, não se falava ainda na abordagem baseada em risco (o “Risk Based Approach”), termo hoje em dia muito mais comum e que será abordado no decorrer deste artigo. O fato não era que eu desconfiava daquela empresa, afinal ela nem era ainda cliente do Banco. Estava me referindo a exigências da legislação, em relação à cadastro e documentação societária.
Os executivos de venda não podem tentar usar como argumento o fato daquela empresa pertencer a um grande e conhecido grupo econômico para deixarem de cumprir a legislação. Não podiam antes e não podem hoje. Está na lei: “A resistência ao fornecimento de informações necessárias para o início de relacionamento” podem configurar indícios de ocorrência de crime de lavagem de dinheiro, nos termos da Carta-Circular 3.542/2012 <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> .
[formulario_fulllist]
Pois bem, certamente, de lá para cá o cenário mudou muito. São vários os grandes grupos econômicos que estão encrencadíssimos na Lava-Jato. Ponto positivo para as áreas de Cadastro, Compliance e Prevenção à Lavagem de Dinheiro; ficou mais fácil explicar o porquê de termos que cadastrar e monitorar os clientes. Argumentos como aqueles, vindos das áreas de negócio, já não convencem mais.
Entretanto, um ponto tenho que concordar. O cadastro do cliente vai muito além de ter uma Ficha Cadastral assinada. Existem discussões filosóficas entre haver ou não diferença entre o “cadastro” e o “conheça o seu cliente”. Efetuar o cadastro de um cliente é simplesmente colocar seus dados dentro de um sistema. Já quando o sistema começa a rodar diariamente listas de restrições, como OFAC ou relação de pessoas politicamente expostas, começamos a conhecer o cliente. Mas a função não é apenas do sistema. Aí eu volto ao meu executivo de vendas, o primeiro na linha de defesa, que tem a principal função de conhecer o seu cliente.
Não estou falando de metas de vendas ou de quais produtos ele vai oferecer ao cliente, mas sim, saber que aquelas operações são compatíveis com os negócios dos clientes. Por mais moderno, completo e preciso que possa ser um sistema de monitoramento, nada supera o conhecimento que uma pessoa, um gerente de agencia, um executivo de contas possa ter sobre o seu cliente. É claro que o sistema é fundamental e é também um excelente instrumento para monitorar de forma contínua os clientes. Mas o papel da pessoa que tem esta função é ainda mais importante. Os principais casos suspeitos que reportei até hoje ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), vieram trazidos a mim por pessoas. Já tive ocasião inclusive, de reporte vindo por parte de funcionários do Back-Office, que mesmo não estando na primeira linha de defesa, tiveram a percepção de que algo parecia suspeito em certa transação.
Ou seja, a pergunta que merece reflexão é se ter a Ficha Cadastral assinada e os documentos societários é assim tão importante neste processo? A reflexão que faço é de que isso faz parte de uma burocracia. Burocracia antiga, porém justificável e eu diria até necessária, já que é grande e sabido o número de fraudes documentais ocorridas no Brasil.  Estatísticas do Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil mostram que 23,37%<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> dos incidentes reportados aquele órgão são resultado de fraudes, ou seja, tentativa de obtenção de vantagem, perdendo apenas para o scan (54,17%), que são ataques a potencial alvos em redes de computadores. Entretanto, muitas instituições amparam-se em ter os documentos como justificativa para dizer que têm um bom e efetivo cadastro. Mas não vão muito mais além do que a coleta de documentos e a checagem de listas e monitoramento de transações com alguns filtros pré-determinados. Pecam entretanto, no quesito “conheça o seu cliente”.
De fato continuamos preocupados com a ausência da Ficha Cadastral daquele grande cliente citado no começo deste artigo. Não apenas porque o regulador exige a documentação, mas também porque aquele cliente de fato apresenta um risco maior, um risco que não se via antes. Entretanto, as nossas preocupações vão além. Da época daquela conversa que tive com o executivo de venda para os dias de hoje, tivemos muito progresso e desenvolvimento tecnológico.  Chegaram os smartphones, as fintechs, as autenticações por impressão digital e reconhecimento facial e diversas outras soluções tecnológicas voltadas a simplificação das operações em instituições financeiras. Chegaram também os bitcoins, com suas características de ausência de identificação cadastral e de controle por parte dos governos. E será que estamos preparados para estas novas tecnologias? Será que as áreas de negócio, os executivos de venda, de fato conhecem o seu cliente? E os nossos sistemas, se adaptaram às novas tecnologias?
Admito que não sou a maior fã dos bitcoins. Acho que existe um risco altíssimo de lavagem de dinheiro. Mas um bom profissional de Compliance precisa estar preparado para entender as novidades, compreender o risco e saber implementar os controles adequados.
E é aí que entra a abordagem baseada em riscos. Como bem conceituou a Comissão de Valores Mobiliários, as inovações propostas na Audiência Pública nº 09/16 <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> que visa revogar a Instrução 301/1999 que dispõe sobre a prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo, permitem “o gerenciamento eficaz das atividades desenvolvidas no processo de identificação, monitoramento, análise, e mitigação de riscos na condução de seus negócios”. O raciocínio baseia-se nas recomendações do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF) e compromissos assumidas junto à Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) e prevê que os segmentos regulados pela CVM “elaborem uma avaliação interna de riscos”. A ideia deste conceito é de que as instituições deverão assegurar que as medidas adotadas para prevenir ou mitigar a ocorrência de lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo sejam proporcionais aos seus riscos, permitindo assim, a alocação preventiva, inteligente e eficiente de seus recursos.
Entretanto, admito que aquele cliente não teria sido classificado como “alto risco”, já que o único indício que tinha no momento, era a recusa de fornecimento de documentação. A lição de casa das instituições financeiras foi e ainda será dura.  Aprendemos na prática com a lava-jato que nenhum cliente está totalmente isento.
Volto então novamente à pergunta que fiz ao executivo de vendas e deixo ela aqui como reflexão. “Você conhece mesmo o seu cliente?”
&nbsp;
As informações aqui contidas refletem as opiniões da autora e não das instituições as quais esteja vinculada
----------------------------
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="http://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/49233/C_Circ_3542_v1_O.pdf">http://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/49233/C_Circ_3542_v1_O.pdf</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.cert.br/stats/incidentes/2015-jan-dec/tipos-ataque.html">https://www.cert.br/stats/incidentes/2015-jan-dec/tipos-ataque.html</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/audiencias_publicas/ap_sdm/anexos/2016/sdm0916Edital.pdf">http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/audiencias_publicas/ap_sdm/anexos/2016/sdm0916Edital.pdf</a>

architecture-2256489_1280

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A lição de casa das instituições financeiras foi e ainda será dura