Quando Ulysses Guimarães promulgava a Constituição de 1988 dizendo que ela era o amparo dos injustiçados e o castigo dos prepotentes, já se passavam quase 400 anos da condenação de Xica Manicongo pelos Tribunais do Santo Ofício. Por se identificar e se vestir como mulher, ainda que tenha nascido identificada com o gênero masculino, a primeira travesti negra do Brasil recebeu a pena de ser queimada viva em praça pública e ter sua memória amaldiçoada.
O processo criminal, que tinha o objetivo de apagar a existência trans, bebeu do próprio veneno. Séculos depois, Xica Manicongo é símbolo de resistência e luta por existência, direitos e visibilidade. A transvestigineridade (termo que envolve todas as identidades de homens e mulheres trans, travestis e pessoas trans não binárias) sempre existiu e existirá, ainda que violências estruturais busquem nos desumanizar para legitimar nossa invisibilidade e o afastamento de nossos corpos do exercício da cidadania.
Hoje temos o dia 29 de janeiro como o Dia da Visibilidade Trans para mostrar que o que a população trans ainda tem de invisível, tem de força para lutar pelos seus direitos. Luta que não diz respeito apenas à existência no país que mais mata pessoas trans no mundo[1] e que traz uma expectativa de vida de 35 anos às pessoas assim identificadas, mas também por dignidade humana em toda sua plenitude, incluindo direitos civis e políticos e direitos sociais, econômicos e sociais.
A invisibilidade social é causa e consequência da invisibilidade política e jurídica da transvestigeneridade, mas isso está mudando passo a passo com a expansão da cidadania e a ocupação de Casas Legislativas e espaços de poder por pessoas trans que provocam o sistema cisnormativo a incluir perspectivas e necessidades trans em políticas públicas e nos tribunais.
Um exemplo disso é a Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga violências contra pessoas trans, que presido na Câmara Municipal de São Paulo, onde violações de direitos, até então invisíveis para a Casa Legislativa da maior cidade da América Latina, emergem e passam a exigir respostas mais contundentes do poder público para garantir acesso à saúde, emprego, moradia, renda, dignidade menstrual e outros direitos ainda vistos como promessas constitucionais não cumpridas.
Outro é o esforço para incluir transmasculinidades em programa de distribuição de absorventes implementado pela Prefeitura de São Paulo. Quando a lei que institui o programa passou pela Câmara, eu e o vereador Thammy Miranda apresentamos um texto substitutivo para que a entrega de absorventes não fosse restrita a quem se identifica com o gênero feminino, o que foi rechaçado pela casa.
Após a sanção, acionei o Diretório Estadual do PSOL para levarmos a questão ao Judiciário com uma ação direta de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP)[2]. O intuito é buscar uma decisão que garanta que políticas públicas observem a liberdade de identidade de gênero e não deixe de atender a quem menstrua. A ação pende de julgamento, mas já há sinais de avanços no sistema de justiça quando o Ministério Público de São Paulo se manifesta favoravelmente ao pleito dizendo que:
“Expressões normativas que direcionam o programa de saúde pública pautadas na lógica binária de gênero, excluindo pessoas que, à luz de seus direitos à diversidade sexual emanados dos princípios de liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, também devem ser beneficiárias em obséquio à liberdade de identidade de gênero (como os transmasculinos) e que os serviços públicos não podem discriminar negativamente, pelo uso, em sua redação, de vocábulos tonificadores de seu direcionamento a pessoas do sexo feminino.”
O reconhecimento da titularidade de direitos nos tribunais é fundamental para o reconhecimento social. Mas tais reconhecimentos não são espontâneos, fazem parte de um esforço diário e uso de todas as ferramentas que estão à disposição. A luta pelo nome e identidade de pessoas trans vem acumulando vitórias em espaços importantes. Algo fundamental, pois ao se nomear alguém ou alguma coisa, se reconhece sua existência.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ)[3] e o Supremo Tribunal Federal (STF)[4] já garantiram o direito ao próprio nome e à própria identidade quando pacificaram o entendimento de que pessoas trans têm o direito de modificar o registro civil com o nome e gênero que se identificam. Da mesma forma, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)[5] reconhece que as cotas de candidaturas dos partidos políticos são de gênero, e não de sexo biológico, garantido a liberdade de identidade de gênero de pessoas trans e inclusive permitindo que candidatas e candidatos concorram com o nome social. Sem falar da importância do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em garantir que a retificação seja feita diretamente nos cartórios de registro civil – o próximo passo é garantir o acesso universal à retificação pela gratuidade.
Pessoas trans são pessoas. E por mais que tentem apagar nossas existências, nossos corpos estarão presentes no espaço público mostrando que a luta pelos direitos das pessoas trans está inserida em uma luta universal por direitos humanos e de promoção da dignidade humana. Seja normalizando a presença de pessoas trans em corredores de espaços de poder, seja escutando a voz de pessoas trans discutindo a escola, os equipamentos de saúde, a assistência social, a religião, a família, o mercado de trabalho, a economia e o meio ambiente.
A visibilidade trans é necessária para que, cada vez mais, a sociedade brasileira, as famílias e a política compreendam o corpo trans como um corpo humano e um corpo natural que pode ser e estar em quaisquer outros lugares que não só estes a que são sentenciados como o cárcere, a drogadição, a prostituição ou manchetes policiais. A visibilidade trans deve servir para refletirmos sobre a cidadania de pessoas travestis, homens e mulheres trans e não binárias e sobre a luta permanente por direitos, de modo que sejamos lembradas e vistas pelo que somos, queremos e sonhamos.
Nossos corpos continuarão impulsionando políticas de transformação profunda e radical da sociedade, e continuaremos nos movimentando para movimentar toda a sociedade junto conosco.
[1] Importante levantamento realizado anualmente pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). O “Dossiê: ASSASSINATOS e violências contra pessoas Trans em 2021 está disponível em https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf
[2] Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2179353-34.2021.8.26.0000, Relator Desembargador Ferraz de Arruda, Órgão Especial, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
[3] Em maio de 2017, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1.626.739/RS, relator ministro Luis Felipe Salomão, decidiu que pessoas trans têm o direito de mudar o gênero no registro civil sem necessidade de cirurgia de redesignação sexual.
[4] Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Insconstitucionalidade nº 4.275, Relator do Acórdão Ministro Edson Fachin, entendeu que as pessoas trans têm o direito de alterar nomes e sexo no registro civil sem a necessidade de realizar cirurgia de redesignação sexual e sem apresentar laudo médico pericial.
[5] https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Marco/tse-aprova-uso-do-nome-social-de-candidatos-na-urna