Henrique Arake

In claris cessat interpretatio. Esse antigo brocardo jurídico é elucidativo em si mesmo e serve de orientação para que os operadores do Direito não se percam em devaneios desnecessários quando o comando de uma norma é expresso e claro. Assim, onde a lei claramente diz “não”, não se deve interpretar como “sim”, “talvez” ou “de vez em quando”.
Nesse passo, em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou seu entendimento de 2016<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> com relação à interpretação do art. 49, §3º, da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm">Lei nº 11.101/05</a> (Lei de Recuperação de Empresas e Falências ou LREF), a saber, o crédito garantido por alienação fiduciária em garantia não se sujeita à recuperação judicial, ainda que o bem garantidor seja, originalmente, de terceiros que não a recuperanda.
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RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. IMPUGNAÇÃO À RELAÇÃO DE CREDORES. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CRÉDITOS GARANTIDOS POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BEM IMÓVEL DE TERCEIROS. CIRCUNSTÂNCIA QUE NÃO AFASTA A INCIDÊNCIA DA REGRA DO ART. 49, § 3º, DA LFRE. 1. (...). 2. O propósito recursal, além de verificar eventual negativa de prestação jurisdicional, consiste em definir (i) se o crédito vinculado à garantia prestada por terceiros se submete aos efeitos da recuperação judicial da devedora bem como (ii) se, para não sujeição de créditos garantidos por cessão fiduciária, é necessária a inequívoca identificação do objeto da garantia. 3. Devidamente analisadas e discutidas as questões deduzidas pelas partes, não há que se cogitar de negativa de prestação jurisdicional, ainda que o resultado do julgamento não satisfaça os interesses da recorrente. 4. O afastamento dos créditos de titulares de posição de proprietário fiduciário dos efeitos da recuperação judicial da devedora independe da identificação pessoal do fiduciante ou do fiduciário com o bem imóvel ofertado em garantia ou com a própria recuperanda. Precedente específico da Terceira Turma. RECURSO ESPECIAL PROVIDO (ecial nº 1.938.706/SP, julgado em 14.09.2021)
Como se vê, a 3ª Turma do STJ reformou acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que havia determinado que os créditos que possuíam garantia fiduciária prestada por terceiros não estariam abrangidos pela extraconcursalidade do art. 49, §3º, da LFRJ.
À primeira vista, essa questão não é relevante: um tribunal de instância ordinária teve uma de suas decisões reformadas pelo tribunal de instância superior. Ocorre que o dispositivo citado acima é bastante claro ao estabelecer que os créditos do “credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis” não serão submetidos “aos efeitos da recuperação judicial”.
Há, pois, dois pontos dignos de destaque neste caso: (i) não se tratou de uma questão inédita – o STJ já havia uniformizado essa interpretação do art. 49, §3º, da LREF em 2016; e (ii) o texto do referido dispositivo não dá margem para interpretação diversa.
<blockquote class="jota-article__eye">Em outras palavras, as pessoas que tenham celebrado contratos de mútuo ou de compra e venda parcelada, escolhendo a modalidade de alienação fiduciária como garantia do pagamento, o fizeram (e isso refletiu no preço) na legítima expectativa (calçada na aparência de segurança jurídica que o artigo dá) de que, caso o devedor pedisse recuperação judicial antes da quitação das obrigações, o seu crédito não estaria sujeito a esse procedimento.</blockquote>
Quando os juízes e tribunais passam a, sponte propria, discordar do conteúdo legal, tendem a construir todo um arcabouço teórico (muitas vezes fundamentados em discussões principiológicas) para justificar a não aplicação da lei, mesmo quando o comando legal é claro. Isso gera, à toda evidência, uma tremenda insegurança jurídica que, obviamente, afeta também a formação dos preços.
Já discutimos extensamente a importância da clareza das regras para que as partes consigam solucionar os seus litígios autonomamente<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Com efeito, seja U o valor de um bem da vida qualquer para uma pessoa A que esteja na posse de uma outra pessoa B e seja pA a probabilidade subjetiva, i.e., a “chance” que A acredita que o Poder Judiciário venha a lhe conceder U, caso B venha a resistir à pretensão de A. Por sua vez, seja pB a probabilidade subjetiva que B atribua ao êxito de A, temos que a esperança matemática de A conseguir U é dada por pA×U e que a esperança matemática de B perder U é dada por pB×U.
Ocorre que qualquer litígio eventualmente judicializado (ao que daremos o nome, nesse caso, de lide) impõe custos às partes. Denotaremos o custo de litigar de A por CA (e.g. tempo decorrido, custas, honorários periciais) e o custo de litigar de B por CB. Nesse passo, ainda que A venha a vencer B, A não ficará com U ao final da lide, mas U-CA, pois teve de arcar com os seus custos de litigar. Do mesmo modo, se B perder a ação para A, sua perda não será apenas de U, mas U+CB, pois também terá de arcar com os seus custos de litigar. Assim, temos que os valores esperados de uma eventual lide entre A e B são dados por, respectivamente:
VEA = pA × U – CA
VEB = pB × U + CB
em que VEA é o valor esperado de A e VEB é o valor esperado de B de uma lide. Isso significa que, caso A e B não componham o seu litígio amigavelmente, o A espera obter VEA em um processo judicial e B espera perder VEB no mesmo processo. Desprezando-se, em prol da simplificação do modelo, os custos inerentes a qualquer negociação, é esperado que eventual litígio entre A e B seja resolvido autonomamente, i.e., sem a intervenção do Poder Judiciário, por um valor que fique entre VEA e VEB. Desse modo, para que um acordo seja alcançado, é imperativo que VEA ≤ VEB. Com alguma manipulação algébrica, é possível se demonstrar que é esperado que um acordo extrajudicial seja alcançado se:
(pA–pB) ≤ U – (CA + CB)
Analisando-se essa última inequação, observa-se, dentre outras conclusões, que quanto menor for a diferença entre as expectativas das partes com relação ao sucesso da ação (dada por pA–pB, mais facilmente a inequação será atendida e mais facilmente um acordo será alcançado. Considerando-se que as expectativas de sucesso das partes com relação a uma ação são diretamente influenciadas pela clareza das regras, bem como da interpretação dessas regras dada pelo Poder Judiciário, o corolário desse raciocínio é que quanto menos clara for a interpretação dada pelo Poder Judiciário sobre essas regras, menor a probabilidade de que um acordo extrajudicial seja alcançado, sendo necessário (e desejável) que o litígio seja judicializado.
Nesse ponto, se observa que tanto a falta de clareza das normas, quanto a insegurança com relação à sua interpretação pelo Judiciário contribuem para que menos litígios sejam compostos autonomamente pelas partes e mais ações sejam ajuizadas, contribuindo não apenas para um aumento no congestionamento do Judiciário, como, também, no custo dos negócios celebrados entre os jurisdicionados.
Voltando para a questão que abriu este artigo, temos uma indesejável situação em que, apesar de termos uma norma muito clara a respeito do tratamento do crédito garantido por alienação fiduciária, o ativismo judicial promovido pelo TJSP com respeito à interpretação do art. 49, §3º, da LREF já uniformizada pelo STJ contribui para a criação de um ambiente de insegurança jurídica sobre a efetividade dessa garantia. Vale dizer, quanto maior for o hiato de expectativas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> entre credor e devedor, i.e., quanto maior for a diferença entre pA e pB, maior será a insegurança jurídica com relação à garantia e maior será o custo de concessão desse crédito.
Em conclusão, a autonomia e independência dos membros do Poder Judiciário, em suas diversas instâncias, deve ser ponderada em conjunto com a necessidade de se conceder aos jurisdicionados a segurança jurídica necessária para a condução de seus negócios.
Em um cenário de pós-pandemia como o que estamos vivendo, essa observação é ainda mais importante, pois a recuperação de nossa economia depende de que novos investimentos sejam feitos, o que apenas ocorrerá se as regras forem minimamente claras e seguras.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Vide RECURSO ESPECIAL Nº 1.549.529/SP, julgado em 18.10.2016.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Arake, H. O Princípio da Eficiência no Processo Civil: uma leitura do Código de Processo Civil à luz do princípio da eficiência. São Paulo: Dialética. Capítulo 7.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Gico Jr., I. T. (set/dez de 2014). A Tragédia do Judiciário. RDA - Revista de Direito Administrativo, 267, pp. 163-198. doi:http://dx.doi.org/10.12660/rda.v267.2014.46462

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JOTA

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