Joana de Souza Machado

Carolina Fabião da Silva

Lígia Maria Cerqueira Fernandes

Maria Gabryela Semeão Lima

Cláudio Henrique Ferreira Junior

No dia 10 de dezembro de 2020, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 5091/2020, tipificando a violência institucional entre os crimes de abuso de autoridade previstos na Lei 13869, de 2019. Na justificação para a inovação normativa, parlamentares a situaram como uma reação direta ao caso Mariana Ferrer, às condutas dos agentes públicos em relação à vítima do caso de estupro em julgamento.
As autoras destacaram, a partir do vídeo da respectiva audiência com a vítima/testemunha de acusação, amplamente circulado no país, as práticas de humilhação e revitimização de Mariana, adotadas pela defesa do acusado, o empresário André Camargo Aranha, e, como violência institucional de gênero, a inércia do magistrado e do representante do Ministério Público.
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Não imprimiram, porém, lógica de excepcionalidade. O caso é mobilizado no documento como exemplo que “escancara o que ocorre entre quatro paredes em diversas instituições públicas, como delegacias e tribunais”. O projeto de lei seria, ainda sob a perspectiva das autoras do projeto, uma resposta importante do Parlamento a ajudar na coibição da prática da violência institucional.
Nesta escrita, busca-se explorar brevemente a inovação normativa proposta, como via de enfrentamento à violência institucional de gênero. O objetivo é o de contribuir para a construção de uma agenda de pesquisa jurídica crítica sobre violências institucionais e direitos humanos, uma agenda que articule a importância da luta por direitos, do recurso tático às vias jurídicas, sem perder de vista a ambivalência das instituições e os limites do campo jurídico.
O que prescreve propriamente o projeto de lei em análise? Na redação final aprovada pela Câmara, o projeto, que agora aguarda apreciação pelo Senado,  prevê a pena de detenção de 3 meses a 1 ano e multa à hipótese de “praticar o agente público violência institucional, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à vítima ou à testemunha de violência ou que causem a sua revitimização”.
O projeto remete à definição de violência institucional presente no Decreto nº 9603, de 2018, focada na proteção de crianças e adolescentes, como sendo a “violência praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência”.
Não chega a propor diretamente uma nova definição legal de violência institucional, mas sinaliza para um tratamento mais amplo do tema, sem o recorte etário presente no decreto, ao dispor sobre ideia correlata, a “revitimização”.  Nos termos do projeto, considera-se revitimização “o discurso ou a prática institucional que submeta a vítima ou a testemunha a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a levem a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem” <a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>.
Ao mesmo tempo em que se argumenta, na justificação do projeto, a recorrência de práticas violentas no âmbito de instituições públicas, a inovação pretendida se coloca na exata dimensão problematizada, a da institucionalidade (proposta de projeto de lei por representantes do Poder Legislativo).
Há, nesse sentindo, a sinalização de uma promessa ambígua: a de que por dentro das próprias instituições que histórica e sistematicamente sediam/fabricam violências, mais especificamente o sistema penal, seja possível travar algum nível de enfrentamento das violências institucionais.
Uma ambiguidade que não necessariamente torna a promessa vazia, mas talvez mais complexa do que as tradicionais apostas no campo jurídico, sobretudo as movidas por sanha punitivista, silentes sobre a retroalimentação entre violências institucionais e estruturais.
Na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), em linha semelhante, destacou-se, favoravelmente à aprovação do projeto, a gravidade do problema da violência institucional no país, em especial a violência institucional de gênero, a perpetuar uma “estrutura no sistema penal brasileiro que culpabiliza a vítima”.
<blockquote class="jota-article__eye">Por conta da gravidade acentuada, sinalizou-se urgência na tomada de providências pelo Poder Legislativo e justificou-se a utilização da instância penal, “como ultima ratio, para conter essas condutas com alto poder de lesividade”.</blockquote>
O diagnóstico compartilhado entre as fases de propositura e de avaliação de constitucionalidade  do projeto – sobre a naturalização de violências de gênero na dimensão das instituições públicas – segue sendo nutrido por diversos casos de exposição e repercussão talvez facilitadas com a virtualidade mais presente no exercício do poder público, em razão da pandemia da Covid-19<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
Tomando-se o gênero como categoria de análise<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>, compreende-se um elemento que, configurado de maneira relacional, é constitutivo de diversas formas de poder, de sentidos e naturezas de lugares sociais. A execução do projeto de dominação-exploração da categoria social “homens” requer por vezes que a “capacidade de mando seja auxiliada pela violência”, nas suas mais diversas expressões.
A violência de gênero situa-se, assim, como prática funcional e produtiva – recorrente e não isolada – voltada justamente à manutenção da hierarquia simbólica entre homens e mulheres<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a> (mesmo quando ausente a hierarquia formal).
Opera no sentido de promover, perpetuar, reinstaurar a demarcação de um papel diferenciado às mulheres, a (re) subalternização dos corpos femininos, especialmente os corpos resistentes a esses lugares sociais reservados a mulheres, os que “ousam” ocupar espaços de poder, espaços tradicionalmente masculinos, embranquecidos.
O caso Mariana Ferrer, que motivou a propositura do PL 5091, ilustra de distintas formas a atuação das instituições como dispositivos de poder e biopoder (gênero, raça e classe produzindo efeitos específicos). Homem branco, empresário, acusado de estupro, conta com o garantismo seletivo do sistema penal, que preza a sua liberdade, a sua vida, válida.
A vítima, mulher, é culpabilizada, revitimizada. Servidora do Tribunal de Justiça, mulher, que se manifesta em rede social criticamente à atuação do Judiciário e do Ministério Público no caso, é alvo de sindicância, acusada de violação a deveres funcionais, de “misandria”<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>.
Nesse contexto, a proposta de tipificar a violência institucional como crime, se, de um lado, pode traduzir vivências e demandas legítimas de igualdade, contribuir para a construção de importantes estatísticas, para desnaturalizar em alguma medida no imaginário cultural as violências institucionais; pode, de outro, fragilizar a dimensão da responsabilidade política sobre as violências de gênero, reforçando a dimensão individual, particularista, a chave da virtude, ou a patológica.
A proposta talvez escape da armadilha de mero desejo punitivista, tão bem alertada pela criminologia crítica, pois não acena para novo tipo penal. A partir de um tipo já existente, crime de abuso de autoridade, propõe a criação de tipo penal derivado, tal como ocorreu com o feminicídio.
Com todas as críticas que podem ser feitas à tipificação do feminicídio no Brasil, em especial à deliberada substituição do termo gênero por sexo na redação final, a “gramática especializada” facilita o registro social de uma pandemia antes silenciosa, que se acirra sob os impactos de confinamento da outra pandemia – a da Covid-19 – e ocupa ruidosamente as manchetes no recesso natalino.
O PL 5091/2020, portanto, tem o mérito de comunicar, simbolicamente, a gravidade das práticas institucionais de violência de gênero, que alimentam outras tantas, mas também é via precária de enfrentamento de um problema estrutural.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> Em relação ao texto inicial do projeto, o que segue para o Senado, aprovado pela Câmara com inclusões pontuais, contempla uma ressalva à responsabilização penal: a de quem, “por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”. O projeto sublinha ainda que “a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”. Disponível em: &lt;<a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2264998">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2264998</a>&gt;.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> No dia 09 de dezembro, em audiência virtual na qual se discutiam pensão alimentícia, guarda e visita em relação a filhos menores de idade, com trechos divulgados e amplamente circulados no país, o juiz, lotado na respectiva Vara de Família, ao se manifestar sobre a incidência da Lei Maria da Penha ao caso, afirmou que uma coisa que havia aprendido na vida de juiz era que “ninguém agride ninguém de graça”; sustentou, em outro trecho, que “qualquer coisinha vira Maria da Penha. É muito chato, também”; e, ainda, que “não está nem aí para medida protetiva”. Vídeos disponíveis em: &lt;<a href="https://ponte.org/juiz-ataca-lei-maria-da-penha-e-medidas-protetivas-ninguem-apanha-de-graca/">https://ponte.org/juiz-ataca-lei-maria-da-penha-e-medidas-protetivas-ninguem-apanha-de-graca/</a>&gt;. A Lei 11340/2006, Lei Maria da Penha, que, na fala institucional do magistrado, e inequívoca prática de revitimização, aparece como algo menor, excessivo, a ser menosprezado, é uma resposta também institucional, tardia, do Estado Brasileiro, após ter sido condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) por  negligência e omissão no caso de Maria da Penha, vítima de violência doméstica, tentativa de feminicídio pelo marido e de revitimização pelo sistema penal brasileiro. A condenação do Estado Brasileiro se deu com aporte na “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher”, mais conhecida por “Convenção de Belém do Pará”, de 1994. Trata-se de importante marco na definição e tratamento específico da violência contra a mulher, resultante da luta de movimentos feministas, movimentos organizados em defesa dos direitos das mulheres. Além de acomodar distintas formas de violência, incorpora a dimensão política, institucional, da violência de gênero, fundamental à compreensão da amplitude e da permanência desse problema, imerso nas complexas relações de poder que integram as estruturas sociais. Disponível em: &lt;<a href="http://www.mulheres.ba.gov.br/arquivos/File/Legislacao/4_ConvencaodeBelemdoPara1994.pdf">http://www.mulheres.ba.gov.br/arquivos/File/Legislacao/4_ConvencaodeBelemdoPara1994.pdf</a>&gt;.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analysis. The American Historical Review. Vol. 91, No. 5 (Dec., 1986), pp. 1053-1075.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> SAFFIOTI, Heleieth I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. In.: Cadernos Pagu (16) 2001: pp.115-136. Disponível em: &lt;<a href="https://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a07.pdf">https://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a07.pdf</a>&gt;. O caso de violência institucional de gênero da deputada estadual Isa Penna demonstra bem esse ponto. Imagens das câmeras da maior Assembleia Legislativa do país (Alesp), registraram no dia 16 de dezembro a cena em que um parlamentar – o deputado Fernando Cury – movimenta-se em direção à colega, então apoiada na mesa diretora da Assembleia, e, posicionado atrás dela, em local sabidamente vigiado por câmeras, passa a mão pela lateral do seu seio e em sua cintura, bem em frente à mesa da presidência da Instituição. Após a violência de gênero sofrida, importunação sexual, a deputada reivindicou na tribuna a liberação das imagens, situando o caso como violência institucional, denunciando a omissão da presidência. De acordo com a Deputada, não se trata de caso isolado de violência de gênero em sua trajetória política ou em de suas colegas parlamentares. Disponível em: &lt;<a href="https://istoe.com.br/tiraram-foto-da-minha-bunda-diz-isa-penna-sobre-assedio-na-alesp/">https://istoe.com.br/tiraram-foto-da-minha-bunda-diz-isa-penna-sobre-assedio-na-alesp/</a>&gt;.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> Sobre dispositivos de poder, de biopoder, especialmente no domínio da racialidade, conferir: CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de Doutorado (2005). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: &lt;<a href="https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf">https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf</a>&gt;. Sobre a sindicância aberta contra a servidora que criticou a violência de gênero institucional, conferir notícia disponível em: &lt;<a href="https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/12/19/juiz-pede-sindicancia-para-servidora-que-criticou-audiencia-de-mari-ferrer.htm?fbclid=IwAR0NxvNOKT6PiVJLTd9QC4dzfDGzH10LnapLRmB3h88rrMoeYE9g-p3JCqI">https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/12/19/juiz-pede-sindicancia-para-servidora-que-criticou-audiencia-de-mari-ferrer.htm?fbclid=IwAR0NxvNOKT6PiVJLTd9QC4dzfDGzH10LnapLRmB3h88rrMoeYE9g-p3JCqI</a>&gt;.

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Violência institucional de gênero, inovação e direitos humanos

Comentários ao PL 5091/2020