Maria Luiza Gorga

Thaís Pinhata

O Conselho Federal de Medicina (CFM) é uma autarquia, instituída pela Lei n. 3.268/57, e tem por papel legal supervisionar a ética profissional em todo o país, sendo disciplinador da classe médica, fiscalizando e normatizando o perfeito desempenho da medicina.
Ocorre que, desviando-se desse imperativo legal de atribuição, o que se tem visto é que durante a pandemia do coronavírus o Conselho optou por não apenas deixar de atuar em prol da divulgação e fortalecimento da ciência, omitindo-se frente a inúmeras declarações e atitudes desmedidas de autoridades nacionais, como também passou a agir ativamente de forma a disseminar informações desprovidas de cientificidade, que colocam pacientes e toda a população em risco - direto ou indireto-  de morte, tudo sob o véu de respeito à autonomia do profissional.
<a href="https://www.jota.info/produtos/saude?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Saude_materias"><img class="aligncenter wp-image-292716 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-saude.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O maior exemplo dessas ações é, possivelmente, a recente declaração do presidente do órgão, Mauro Ribeiro, que afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo, que não pretende rever parecer de abril do ano passado que autoriza os médicos brasileiros a prescreverem o chamado Kit Covid (ou Tratamento Precoce), mesmo após o grande número de estudos que demonstram a ineficácia de medicamentos como a cloroquina contra a covid-19 e, ainda, da manifestação de entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) desaconselhando o uso do remédio.
Questionado sobre os relatos de efeitos colaterais graves associados ao uso do citado tratamento (que inclui, além da cloroquina, remédios como azitromicina e ivermectina), Mauro afirmou que o médico tem autonomia para indicar as medicações que julgar necessárias para cada paciente, ainda que assuma que vender o kit como cura milagrosa da doença ou prescrever coquetéis de remédios que podem causar danos estão sujeitos a responder sindicância nos conselhos regionais.
Curiosamente, é recente a atualização do Código de Ética Médica, que passou a vigorar em 2019, e que “reforça o compromisso ético da categoria com o bem-estar e a saúde dos pacientes, coibindo interações com fim de lucro, incompatíveis com os princípios da boa medicina” (da Apresentação ao texto). Também esse próprio Código deixa claro que é inafastável que a autonomia deve observar as práticas cientificamente reconhecidas (Direitos dos Médicos, II).
Outros artigos já trouxeram à tona relações entre a Diretoria atual do CFM e o Bolsonarismo – corrente ideológica do Presidente que é afeita ao negacionismo, à promoção de tratamentos e medicamentos sem evidência científica de eficácia comprovada (ou com evidência de ineficácia), à negação de todas as formas de controle de disseminação, enfim, totalmente contra a saúde e a medicina.
Essa ligação ideológica, contudo, vai além de uma “mera” desmoralização do Conselho Federal de Medicina frente à classe médica e à sociedade.
<blockquote class="jota-article__eye">O papel desempenhado até o momento parece apontar para uma possível prática de condutas criminosas por seus dirigentes, valendo notar que dado o caráter autárquico da entidade são considerados funcionários públicos para fins penais, se comprovado o caráter político das ações executadas, no lugar de seu correto caráter técnico.</blockquote>
São elas, exemplificativamente:
- prevaricação: ao não praticar os necessários atos de disciplinar profissionais que incorrem em práticas absolutamente acientíficas e nocivas (a exemplo da nebulização com hidroxicloroquina, diretamente ligada à morte de pacientes); não manifestar-se com normas e guias de conduta de âmbito nacional aos profissionais médicos, em defesa dos métodos científicos e das vacinas; não zelar pelo trabalho ético e científico da medicina no tocante à indicação de tratamentos e medicamentos, permitindo assim a divulgação e uso de tratamentos e medicamentos que trazem prejuízo e risco à saúde de pacientes.
- condescendência criminosa: ao não serem responsabilizados os profissionais que praticam condutas baseadas em medicações e técnicas desprovidas de evidências de eficácia ou, pior, com comprovação de ineficácia e risco real à saúde e vida dos pacientes.
- incitação ao crime: ao defender a suposta “autonomia” do profissional sobre qualquer evidência científica e sobre as melhores práticas, o Conselho repetidas vezes atua de modo a incitar e permitir a prática de condutas que adentram à seara do charlatanismo.
O que se pode esperar do cuidado à saúde de pacientes quando o próprio órgão máximo da categoria atua deste modo? Como retomar a credibilidade do Conselho frente aos profissionais esclarecidos e à população?
Não se pode ter as respostas em um artigo tão breve, mas certamente o caminho deve perpassar pela responsabilização dos responsáveis pelas práticas nocivas aos pacientes e pela permissividade e divulgação a tais práticas – sejam quem forem.
Com o andar da pandemia, grupos de interesse vieram à tona, demonstrando que muitas vezes aqueles que são os responsáveis pela guarda de valores fundamentais para o bom funcionamento da sociedade têm em realidade outros objetivos.
A classe médica e as demais autoridades públicas, contudo, não podem permitir que se perpetuem tais grupos de interesse em posições de poder como o é o Conselho Federal de Medicina, sendo urgente a tomada de ações.
Quis custodiet ipsos custodes? Pratiquemos a sousveillance<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Neologismo criado por Steve Mann, pesquisador canadense, em artigo de 2004 (Disponível em: <a href="http://wearcam.org/acmmm2004sousveillance/mann.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">http://wearcam.org/acmmm2004sousveillance/mann.pdf</a>). Enquanto "surveillance" (vigilância), tem o prefixo sur, que significa “acima”, a sousveillance inicia-se com o prefixo sous, que significa “abaixo”. Ou seja, sua intenção é incentivar formas de monitoramento do Estado (o topo) por parte dos cidadãos (que ficam abaixo).

saúde

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JOTA

CFM deveria zelar pela ética médica, mas em desvio de função passou a disseminar informações desprovidas de cientificidade

Quem há de vigiar os próprios vigilantes?

Durante a pandemia, o CFM optou por deixar de atuar em prol da divulgação e fortalecimento da ciência