Ramon Alberto dos Santos

José Augusto Fontoura Costa

A internet não é um território transnacional sem fronteiras. Talvez tenha dado tal impressão no passado, mas hoje em dia nem essa resta mais. Por razões políticas, morais ou econômicas há uma crescente balcanização da rede mundial, ou seja, uma segmentação dos conteúdos acessáveis conforme critérios controlados por atores privados e públicos.
O leitor deste artigo, por exemplo, sabe que há filmes e séries em serviços de streaming que podem ser vistos em equipamentos no exterior, mas não no Brasil. Também sabe, ou ao menos intui, que isso se deva ao fracionamento territorial de direitos e licenças de distribuição, reprodução e exibição. 
Há, porém, meios técnicos que podem ser empregados para circundar alguns desses limites. As redes privadas virtuais (em inglês “virtual private networks” ou VPN) são uma forma de burlar tais controles. De fato, elas são companheiras de longa data do público corporativo, pois viabilizam o emprego seguro da internet para integrar a rede interna de instituições públicas e privadas. Não houvesse as VPN, o acesso seguro de um terminal remoto a uma rede empresarial deveria ser mediado por um vínculo comunicacional exclusivo, como se fazia, por exemplo, no home banking telefônico de décadas atrás. Assim, a tecnologia de VPN é fundamental para a redução de custos de comunicação sem prejudicar a segurança. 
Porém, atendendo a demandas resultantes da balcanização da rede, as VPN vêm sendo empregadas para além dessa utilização tradicional. Há modelos de negócios distintos capazes de viabilizar outros usos, como a proteção da privacidade na navegação na internet e o acesso a conteúdos indisponíveis no território do usuário. 
Uma forma simples de imaginar uma rede privada virtual é vê-la como equivalente a um cabo de rede que, ao invés de ser físico (por exemplo, constituído de fibra ótica com camadas protetoras de aço e outros materiais) é digital, constituído de código, no que se chama tecnicamente de protocolo de tunelamento, com os pacotes de dados sendo criptografados antes de serem enviados.  
Esse “cabo de rede” virtual não precisa ser distribuído fisicamente (como com um cabo submarino que liga continentes, ou como cabos de rede que ligam várias partes de um escritório), na medida em que ele utiliza a própria internet como infraestrutura de distribuição. Ao ser utilizada, a VPN virtual cria entre as extremidades um caminho seguro para o tráfego ponta-a-ponta de dados. Nessa conexão, somente usuários autenticados fazem parte da transmissão.  
A variedade dos usos e dos tipos de serviços de VPN possibilita a classificação em corporativas e comerciais. Os serviços de VPN corporativa são para que entidades públicas e privadas conectem seus funcionários a sua rede corporativa, de modo seguro e por meio da internet, usando o software, os equipamentos e o suporte do provedor de serviços da VPN corporativa. A maior parte dos serviços e dos provedores de VPN conhecidos do público se enquadram nessa categoria.  
Já os serviços de VPN comercial oferecem as tecnologias diretamente a usuários individuais para se conectarem à rede de computadores da própria empresa provedora do serviço, podendo assim, proteger o fluxo de dados do seu acesso à internet. É possível, por exemplo, evitar acessos indevidos ao se utilizar uma rede wifi pública e utilizar outro número de IP que não o seu próprio. Não se busca o acesso seguro a uma rede corporativa, mas a utilização dos endereços de IP de qualquer dos países cobertos pela prestadora. 
Nos termos do Marco Civil da Internet, o serviço de conexão à internet é definido como o serviço que possibilita “a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP” (artigo 5º, V), sendo prestado por um “administrador de sistema autônomo”, que é conceituado como “a pessoa física ou jurídica que administra blocos de endereço IP específicos e o respectivo sistema autônomo de roteamento, devidamente cadastrada no ente nacional responsável pelo registro e distribuição de endereços IP geograficamente referentes ao país” (artigo 5º, IV). Para ser um administrador de sistema autônomo não é necessário dispor de licenças da Anatel, uma vez que a administração do sistema autônomo não é caracterizada como prestação de serviço de telecomunicações.  
Já o serviço de aplicação de internet seria o serviço que possibilitaria o acesso ao “conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet” (artigo 5º, VII), sendo “terminal” definido como “o computador ou qualquer dispositivo que se conecte à internet” (artigo 5º, II). Essa definição adotada pelo Marco Civil da Internet é ampla, indicando um diálogo com o conceito técnico de “camada de aplicação” em redes de computadores. Em sua primeira versão colocada em consulta pública, o texto adotava a nomenclatura de “serviços de internet”[2], em uma referência a literatura jurídica dos Estados Unidos que aborda as diferenças entre Internet Service Providers (ISPs), que poderiam ser traduzidos para o conceito do Marco Civil da Internet de "Provedores de Conexão de Internet", e os Online Service Providers (OSPs), que seriam os "Provedores de Serviço de Internet" (texto da segunda fase da consulta pública) ou "Provedores de Aplicação de Internet" (texto atual do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/marco-civil-internet">Marco Civil da Internet</a>). 
O maior desafio que se coloca, então, na leitura do conceito de “aplicação de Internet” está na caracterização das funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet, na medida em que essa caracterização pode ser interpretada de uma maneira ampla, abarcando, potencialmente, todo o universo digital de informações, serviços e produtos disponíveis para acesso através da internet, independentemente de estarem disponíveis em outros meios.  
Pergunta-se, então: o fato de uma prestadora de VPN comercial disponibilizar ao usuário um novo endereço IP caracterizaria o serviço como sendo de “provimento de conexão à Internet”; ou se seria o serviço considerado como “provimento de aplicação de Internet”, pois o terminal do usuário já estaria conectado à internet com um endereço IP atribuído. O serviço de VPN poderia ser considerado como uma funcionalidade na camada de aplicação acessível pela internet. Diante dos elementos trazidos acima, parece-nos que a segunda opção é a que melhor reflete a realidade técnica destes serviços. 
Uma leitura apressada do cenário descrito acima poderia considerar que o serviço de VPN individual se assemelha ao serviço de provimento de conexão à internet do Marco Civil da Internet, na medida em que ele pareceria “atribuir” ao terminal do usuário um novo endereço de IP. Essa interpretação, contudo, não se mostra adequada com o funcionamento da internet, dos serviços de VPN comercial e nem com a lógica jurídica instituída pelo Marco Civil da Internet. 
Quando o usuário se conecta ao servidor de um provedor de aplicação de internet para realizar uma atividade como enviar um e-mail, publicar um vídeo ou fazer uma ligação por meio do serviço de Voz por IP (VOIP), ele passa a realizar essas atividades através de um endereço de IP alocado para o referido provedor de aplicação de internet. É por essa razão que o artigo 15 estabelece o dever de guarda dos registros de acesso a aplicações de internet.
No caso dos serviços de VPN comercial, a lógica de fluxo de dados se mostra semelhante, com a grande diferença de que a aplicação de internet em questão é exatamente o provimento de uma rede privada virtual com servidores com endereços IP diferentes daqueles utilizados pelo usuário, de modo que para o mundo externo as atividades realizadas por esse usuário passam a ser feitos por meio destes outros endereços de IP. 
Assim, cabe questionar: empresas nacionais que prestam serviços para referidos provedores de VPN comercial, para viabilizar a oferta de endereços de IP geolocalizados no Brasil, podem ser consideradas como provedoras de conexão à internet? A resposta também nos parece ser afirmativa, desde que: a) sejam administradores de sistemas autônomos - ou seja, realizem a administração de blocos de endereço IP específicos e o respectivo sistema autônomo de roteamento, devidamente cadastrada no ente nacional responsável pelo registro e distribuição de endereços IP geograficamente referentes ao Brasil; e b) forneçam o provimento de conexão à internet no Brasil às empresas de VPN, ou a terceiros por elas contratado, ou seja, a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP sob sua administração.
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[1] O presente artigo adapta trechos da tese de doutorado “O acesso a conteúdos digitais disponíveis na Internet apenas em outros países: uma análise jurídica a partir da oferta e uso de serviços de VPN individual”, defendida perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo por Ramon Alberto dos Santos em 2023.
[2] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Marco Civil da Internet. Minuta de Anteprojeto de Lei para debate colaborativo. Disponível em: &lt;<a class="Hyperlink SCXW154748189 BCX0" href="http://about:blank/" target="_blank" rel="noreferrer noopener">http://pensando.mj.gov.br/marcocivil2009/debate/</a>&gt;. Acesso em: 16 jul. 2023.

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JOTA

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