Diego Sena Bello

Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto “Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!", dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a coordenação acadêmica do professor, advogado e consultor trabalhista Ricardo Calcini.
O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas às sextas-feiras. E a você leitor(a) que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pergunte-ao-professor">#pergunte ao professor</a>.
Neste episódio de nº 112 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:
Pergunta ► Viagem a lazer durante a licença médica justifica a aplicação da justa causa?
Resposta ► Com a palavra, o professor Diego Sena Bello.
Tendo como paradigma uma decisão proferida pela 3ª Câmara do TRT-12, nos autos do processo 0000786-02.2020.5.12.0061, o tribunal validou a justa causa aplicada a uma empregada que, após entrar em licença médica alegando na época sintomas da Covid-19, realizou uma viajem de lazer enquanto deveria estar cumprindo a quarentena.
Registre-se, de início, que a análise abordará, em realidade, a problemática de fundo, qual seja, a validade da justa causa em situações de licenças médicas.
Segundo consta, a empresa enquadrou a situação nas alíneas "b" e "h" do artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/CLT">CLT</a>), que tratam de “incontinência de conduta ou mau procedimento” e “ato de indisciplina ou de insubordinação”, respectivamente. Contudo, a trabalhadora, apesar de concordar que errou na conduta de descumprir o isolamento, entendeu que a aplicação da justa causa foi desproporcional, haja vista que mereceria apenas sanções dos órgãos sanitários, mas não a dispensa por justa causa.
Nessa esteira, uma vez apresentado o contexto da problemática, resta o seguinte questionamento a ser abordado: a conduta da empregada resulta em quebra do liame de confiança e da boa-fé que é essencial à manutenção da relação laboral?
Inicialmente, é de suma relevância repisar que o contrato de emprego é sinalagmático – nas palavras de Luciano Martinez,<a href="#_ftn1" name="_ftnref2">[1]</a> “os direitos, deveres e obrigações encontrados nos ajustes são opostos e equilibrados de modo que a obrigação de um dos sujeitos seja fundamento jurídico da existência de outro direito, dever ou obrigação” – e comutativo, pois cria para ambas as partes direitos, deveres e obrigações. Assim sendo, as partes possuem deveres recíprocos, ou seja, o cumprimento dos deveres jurídicos de uma das partes enseja, em contrapartida, o dever da parte contrária de cumprir seus deveres, havendo, desse modo, uma expectativa mútua.
Ocorre que o dever principal da relação de emprego é o pagamento do salário – dever do empregador – e a prestação do trabalho – dever do empregado. Contudo, em paralelo, há deveres acessórios, dentre os quais podemos elencar, a título exemplificativo, os deveres de colaboração, respeito, diligência, lealdade e fidelidade<a href="#_ftn2" name="_ftnref3">[2]</a>. A existência conjunta desses deveres acessórios produz o liame de confiança, o qual, uma vez quebrado, justifica o fim da relação laboral.
Dessarte, arrisco afirmar que os deveres acessórios supracitados integram a concepção da boa-fé que, a meu juízo, é elemento essencial para as relações jurídicas, em especial para a manutenção da confiança entre as partes da relação de emprego. Nesse sentido, vale destacar que a boa-fé tem, à luz do entendimento doutrinário, a função de definir um padrão ético dos agentes, de modo que as relações interpessoais se desenvolvam fundadas na confiança, na ética e na lealdade.
Logo, à luz da boa-fé, pressupõem-se que todos devem agir de modo a observar um padrão ético e moral que se espera de um “homem comum” para que a relação possa atingir os fins desejados pelas partes. Entretanto, mister observar que a boa-fé não deve ser interpretada apenas como uma norma de conduta, como uma ou mais obrigações das partes, pois, na verdade, é uma premissa de todo o ordenamento jurídico, ou, como leciona Américo Plá Rodriguez<a href="#_ftn3" name="_ftnref4">[3]</a> ao tratar do princípio da boa-fé, “um princípio jurídico fundamental”.
Sobre a boa-fé, pertinente ressaltar ainda a lição de Vólia Bomfim Cassar,<a href="#_ftn4" name="_ftnref5">[4]</a> a qual ensina que há a boa-fé objetiva e subjetiva, sendo que “a objetiva determina um modelo de conduta, forma que cada pessoa deva agir de forma ética, com caráter reto, com honestidade, lealdade e probidade”. Por outra banda, a boa-fé subjetiva, “[...] demonstra um estado de consciência, isto é, a intenção, o estado psicológico ou íntima convicção do agente. O manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui acerca do negócio jurídico que está realizando. Tem o sentido de conhecimento ou de desconhecimento de uma situação”.
É importante observar, entretanto, que a justa causa é a penalidade máxima aplicada pelo empregador e, portanto, faz-se necessário observar que sua aplicação seja proporcional à falta cometida pelo empregado. Assim sendo, a falta que gera a despedida por justa causa deve ser suficientemente grave, sendo necessário pontuar que a quebra da confiança/lesão à boa-fé não necessariamente justifica a aplicação da justa causa, motivo pelo qual a análise deve ocorrer à luz do caso concreto.
Dessarte, a partir dos elementos teóricos supracitados, parte-se para a análise do caso concreto. E, in casu, a análise crítica da decisão pressupõe relembrar que na época a pandemia ensejou uma série de restrições a sociedade, as quais, obviamente, impactaram na realização da atividade produtiva. Assim, visando diminuir o impacto econômico das medidas restritivas, o governo federal elaborou programas e normas jurídicas que tinham por premissa basilar a manutenção do emprego e da atividade empresarial.
Além disso, o Ministério da Saúde, através da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Portaria/PRT/Portaria%20n%C2%BA%20356-20-MS.htm">Portaria 356/2020</a>, tinha definido o procedimento que deveria ser adotado pelas empresas quando da ocorrência de casos suspeitos de Covid-19. Em tal documento, o ministério determinou às empresas que afastassem os trabalhadores (em caso de suspeita) para que fizessem o isolamento enquanto aguardam resultados de exames laboratoriais.
E, ainda, enquanto houvesse suspeita de contaminação, os órgãos de saúde determinavam que o indivíduo fizesse isolamento, de modo a evitar o contato com outras pessoas e, portanto, a propagação do vírus. Essa era, indiscutivelmente, uma obrigação social, ou seja, um dever de respeito com o próximo.
De mais a mais, para além de um dever social, a observância das normas de proteção à segurança e à saúde é uma obrigação do trabalhador inerente ao contrato de emprego, sendo que a inobservância implica em infração disciplinar do empregado, nos termos dos art. 158 e 482 da CLT e do item 1.4.2.1 da NR 01.
Contextualizando o fato pretérito da pandemia para os dias de hoje, certo é que se discute a proporcionalidade entre a falta cometida e a pena aplicada (justa causa), quando o funcionário, por exemplo, munido de atestado médico que lhe dá, por força de lei, o direito ao afastamento do trabalho, opta voluntariamente por viajar a lazer.
Aqui está, a meu juízo, devidamente justificada a falta grave, haja vista que a trabalhadora deixou de prestar serviços em razão da licença médica e, valendo-se dessa situação, omitiu do empregador a viagem para ausentar-se do trabalho com o recebimento do salário. Há, por isso, uma indiscutível quebra da confiança pela ausência de boa-fé.
Em síntese, mesmo em hipótese de interrupção contratual, como é o caso de licença médica, a boa-fé ainda se mostra presente nas relações jurídicas, devendo ser o fio condutor do agir de todas as partes envolvidas. A Justiça do Trabalho, nesse aspecto, tem – e teve com a decisão ora comentada – um papel primordial, qual seja, mostrar para empregados e empregadores que a observância das normas jurídicas e o dever de agir pautado na boa-fé é uma obrigação, bem como que a sua inobservância não será relevada por essa Justiça Especializada, assim como não deve ser relativizada pelo Poder Judiciário.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho: relações individuais, sindicais e coletivas do trabalho. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 476.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn3">[2]</a> MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho: relações individuais, sindicais e coletivas do trabalho. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 477.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn4">[3]</a> PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr,2015. p. 269.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn5">[4]</a> CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: Método, 2014. p. 227-228.

viagem

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JOTA

Boa-fé deve ser o fio condutor do agir de todas as partes envolvidas

Viagem a lazer durante licença médica justifica aplicação da justa causa?

Mesmo em hipótese de interrupção contratual, como é o caso da licença médica, a boa-fé ainda se mostra presente nas relações jurídicas