Ygor Valério

A internet fez desaparecem gradativamente muitas das ineficiências sobre as quais inúmeros modelos de negócio foram construídos. É o que está por trás de fenômenos como Uber e AirBnB que, entre tantos outros, colocam a tecnologia a serviço da superação de barreiras antes consolidadas e que reduziam as opções do usuário aos serviços já consolidados no mercado. Na economia criativa, entretanto, a verdadeira revolução só chegará quando surgir um modelo comercial minimamente sustentável para os titulares de direitos.
Em qualquer parte do mundo haverá quem deseje lucrar ocupando por alguns dias seu imóvel ocioso, mas entregar as chaves de sua casa a um estranho ou, no caso do viajante, confiar em um locador desconhecido, muitas vezes um estrangeiro, é um risco. Além disso, como fazer com que demanda encontre oferta a um baixo custo de transação?
A internet forneceu concretamente um meio para superar essas barreiras. Reúne interessados em torno de um aplicativo que processa pagamentos adiantados, verifica a confiabilidade dos usuários e estabelece um sistema de avaliação de locatários e locadores, fazendo, portanto, desaparecerem algumas das barreiras por trás dessa ineficiência de alocação, que tradicionalmente leva viajantes a buscarem o mercado hoteleiro.
Algo semelhante se passou com o mercado de transporte urbano, especialmente o de taxis, quando Uber e outros aplicativos similares começaram a ganhar corpo em praticamente todas as grandes capitais do mundo. O ponto de taxi deixou de ter sentido. Seu motorista de ocasião passou a ser submetido a um sistema de avaliação feito pelos usuários, e deixou de ser essencial carregar moeda em espécie no bolso. Soluções, portanto, que diminuem o custo de transação, fornecem um sistema de avaliação de risco e incrementam a eficiência na alocação da base instalada de veículos, já que o motorista que atende à chamada é aquele fisicamente próximo de onde estamos.
É essencial entender que um fator importante no estabelecimento histórico de modelos de negócio como o de hotelaria e o de transportes urbanos levou em conta a necessidade do usuário de ultrapassar uma ou um conjunto de ineficiências desse gênero - segurança, confiabilidade, custo de transação etc. Quando essas ineficiências desaparecem por completo ou se mitigam, como nos casos mencionados, a mudança de paradigmas é inevitável.
Se a realidade nova acaba de chegar para setores bastante vinculados aos bens propriamente materiais como carros e imóveis, trata-se de uma realidade já antiga e estabelecida para aquelas indústrias cujos produtos são essencialmente imateriais, como a indústria de conteúdo. Nessas, a reacomodação econômica se encontra em estágio bastante avançado, com efeitos profundos já muito visíveis, especialmente no que diz respeito à distribuição do produto. O quase desaparecimento do mercado de vídeo-locadoras e a constante redução dos espaços dedicados a CDs e DVDs no varejo são exemplos dessa reacomodação.
Mesmo sendo essa mudança uma velha conhecida da indústria de conteúdo, a verdade é que ainda estamos muito longe de explorar plenamente o potencial que a rede nos apresenta, talvez por falta de um diálogo mais sério, programático e visando o longo prazo entre governos, usuários, empresas de tecnologia e produtores de conteúdo, diálogo que permita que todos os interesses sejam considerados.
Imagine-se que fosse possível a qualquer pessoa emprestar digitalmente uma cópia de livro armazenado em qualquer biblioteca pública do mundo, por meio de um sistema que controlasse os dias de disponibilidade, impedisse a cópia, e garantisse que não mais de uma pessoa desfrutaria de uma mesma cópia naquele período.
Ora, dispomos de tecnologias para fazer algo semelhante já há pelo menos duas décadas, mas essa ideia segue sendo não mais que uma quimera. Uma das razões é justamente o fato de que, do ponto de vista do titular de direitos, o modelo de bibliotecas públicas só não elimina completamente sua capacidade de obter ganhos com suas obras em razão das ineficiências de alocação de bens.
Bibliotecas públicas em geral funcionam das 8 às 17 horas, em um espaço físico limitado que comporta um determinado número de livros. O acesso a essas bibliotecas não é pleno, seja pela necessidade de deslocamento, seja pelo horário de funcionamento, seja porque, pelo ponto de vista de oferta e demanda, o espaço limitado faz com que a biblioteca tenha que escolher determinadas obras para seu catálogo e rejeitar outras, de modo que nem sempre estão disponíveis os livros pelos quais um usuário se interessa. Nesse caso, claro, pode-se sempre buscar a obra em alguma outra biblioteca da cidade, mas isso aumenta o custo de deslocamento e o tempo investido na retirada e na devolução, de modo que muitas vezes é mais barato comprar o livro, especialmente se a compra for online.
Já em uma realidade inteiramente digital, seriam eliminadas todas essas barreiras - acesso em qualquer horário, sem deslocamento físico e prateleiras virtualmente infinitas. A disponibilidade de obras sequer precisaria ser consultada por biblioteca, podendo, ao revés, constar de um catálogo centralizado de todas as bibliotecas da cidade, do país, do mundo. Em outras palavras, eficiência plena de alocação, o que, no limite do raciocínio, significaria que ninguém nunca mais teria a necessidade de comprar um livro, vendo-se logo o porquê de ser um sistema como este inviável, nos moldes atuais, do ponto de vista do equilíbrio econômico, apesar de belo e desejável do ponto de vista do acesso.
É comum que o debate acerca dessas profundas mudanças fique circunscrito ao campo da regulação, e isso é um erro grave a obliterar a visão e impedir que os verdadeiros conflitos sejam percebidos. Para além do proibido e do permitido, há uma ebulição econômica que nos traz novos caminhos, novas oportunidades, e uma reestruturação fundamental de inúmeros modelos de negócio que nos acompanham já há muitas décadas.
Mas quem proporá um caminho econômico sustentável que privilegie o acesso e não extermine a produção de conteúdo, sem a qual a ideia mesma de acesso perde o sentido? Eis o santo graal, sobre o qual precisamos falar mais e mais, e que certamente será uma construção coletiva. É na ágora e no mercado que a atingiremos, e não no tribunal nem nas casas legislativas.
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* Este é o segundo de uma série de cinco artigos escritos para marcar o mês em que se comemora o Dia Mundial da Propriedade Intelectual (World IP Day). A data, 26 de abril, é celebrada anualmente pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO) e reforça a atenção da sociedade para a necessidade de proteção dos direitos imateriais como forma de impulsionar a inovação e a criatividade.

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JOTA

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